O ANJO CAOLHO

Naquela família tradicionalmente feliz, o único empecilho desagradável era a velhice ultrapassada de tio DUDU, que era tratado feito um chinelo furado e sem um pingo de valor.Mas que reconhecimento poderia ter um sapateiro muxiba que não comprava uma batata para a sopa da janta, sem que contasse a mesma ladainha? - Não tive aumento de salário.Estourou a guerra no Iraque.Fiquei assustado com a morte da bezerra... E assim todos iam engolindo tio Dudu, vivo, é claro!

Faziam vaquinha para o remédio da pressão, passavam o chapéu na vizinhança para pagar o RX da coluna e quando morria alguém arrumavam as roupas do falecido para o deselegante tio Dudu. Para que ele não padecesse num asilo qualquer, ergueram uma “gaiola” no fundo do quintal, onde pudesse esticar seu couro no poleiro.

Sandro tinha asco do tio e lhe mandava calar o bico antes que morresse engasgado com o próprio alpiste, colocado todos os dias na sua cumbuca de plástico.Tanta gente ia, numa boa, mas ele se fazia de difícil e tinha uma saúde de ferro.Dizia para o tio, antes de dormir:

- Se um anjo dourado aparecer na calada da noite, lhe chamando para um passeio, relaxa e vai com ele, tio Dudu!

Ele sonhava acordado com o velório de arromba do tio Dudu, organizando todos os detalhes com o maior carinho. Após um minuto de silêncio, em homenagem a memória daquele homem querido, Sandro ordenaria com voz firme:

- Que toquem o som!

E o forró comeria solto, numa explosão de fogos de artifício, com direito a uma rodada de bingo valendo um prêmio em dinheiro.

Só que a realidade era outra e enquanto fazia a lista dos convidados mais íntimos para o velório do Século, tio Dudu se fazia de bobo, com lágrimas nos olhos.

- Sandro BANDIDO! Você ainda me paga!

Nunca pensou que fosse tão humilhado.Justo ele que se achava um homem bacana e até engraçadinho...Então resolveu pregar uma peça naquele otário e apareceu com um plano macabro.

Naquela manhã ficou ciscando no quintal, com cara de susto, trincado de pavor.Chamou Sandro no canto do muro, lhe confessando com os olhos assombrados que teve uma visão do além, fúnebre e celestial.Havia visto um anjo loiríssimo com os braços abertos, dentro de um rabecão dourado, chamando o seu nome: - Dudu, Dudu, Dudu...

Sandro se arreganhou todo, sorrindo:

- Não tema! Vai tio, vai com ele!

Nisso tio Dudu, com a boca trêmula, disse que precisava de mais um tempo para arrumar seus últimos pertences; aqueles objetos de valor que tanto amava.Sandro soltou uma gargalhada, feliz da vida:

- É pra já!Eu ajudo o senhor.

Mais que depressa avisou a todos os familiares da casa que tio Dudu faria uma longa viagem Ninguém entendeu nada.Então Sandro fez mistério, se trancando no quarto para os últimos preparativos. Colocou na maleta um gorro de lã, porque costumava esfriar no cemitério, uma figa da sorte e a uma faixa de adeus, bordada em letras vermelhas! Disfarçadamente chamou o tio, lhe cochichando no ouvido.Se naquela noite o anjo voltasse, com certeza tio Dudu já estaria pronto.

Assim que escureceu, arrumou a cama do velho, sentando-se ao seu lado.Queria conferir de perto a partida triunfal de tio Dudu, que de repente se estrebuchou todo e começou a gritar:

- O anjo, Sandrinho. O anjo chegou! Ele está aqui na porta do quarto...

O sobrinho pistoleiro apanhou a maleta do tio lhe afagando a testa.Tremia de felicidade! Até que enfim havia chegado à hora de desovar aquele peso pesado.

- Calma, querido! Tudo está sob controle.Boa viagem e Adeus!

Foi quando tio Dudu não se conformou com o ocorrido:

- Sandrinho, o anjo é lindo; alto, musculoso e dourado, mas é caolho!

O quê! Isto mesmo. Tio Dudu fingia ter uma visão poderosa, daquelas de cair à peruca.Ele inventou que o Anjo era caolho e não conseguia enxergar mais o caminho de volta, encontrando nos olhos de Sandro a luz da benevolência, como um farol em rumo a Eternidade.

- Que emoção! Você foi o escolhido para me guiar no caminho além-túmulo.Partiremos juntos, como carne e unha.- babava de alegria.

Pode parar por aqui porque agora tio Dudu não sairia para canto nenhum.Sandro lhe abraçou forte e aos prantos segurou suas pernas com toda a força:

- Volta, tio Dudu, volta!

Depois trancou todas as portas da casa, de medo que aquele anjo intrometido voltasse para lhe fazer outra proposta indecente.

Daquele dia em diante tio Dudu se tornou o mais querido e paparicado do mundo e Sandro carregava o fofo no colo pra lá e pra cá, zelando pessoalmente de sua saúde e bem-estar.E jurava para o tio que se por acaso o anjo aparecesse na sua frente, lhe meteria tanta bicuda que além de caolho, ficaria perneta!

Silmara Torres Retti