O Dono Infiel *
Ele era um cachorro de rua, sem eira e nem beira, perdido pela cidade a procura de novas emoções. Nunca teve um proprietário, uma casa ou alguém que lhe dessem as ordens: senta, pega , morto !
Pra quê, se o bom mesmo é não ter hora pra nada, livre, sem coleira agarrada no pescoço e aquela comidinha minguada que todo dono muxiba sabia oferecer?
Poderia passar a noite em claro, sempre sozinho ou na companhia de quem lhe interessasse, fuçar nas lixeiras mais ricas do bairro, beber água de chuva e tirar um sarrinho dos outros cachorros que só latiam do portão para dentro.
Mas às vezes batia uma vontade louca de mudar de vida.Ter um cantinho só seu com uma cumbuca de água fresca com seu nome gravado.E que nome?Afinal ele já teve tantos, e no momento não tinha nenhum. Todo mundo lhe metia o pé, lhe xingava, às vezes faziam carinho... E pronto!
Porém já deveria ter os seus cinco anos de idade, bem vividos, e precisava se acertar de vez; pensar no futuro, na velhice e na própria aposentadoria.O negócio era sair à caça de alguém que pudesse lhe dar cama, mesa e banho.
Fez carinha de choro e ficou ali sentado, esperando que passasse alguém que lhe tocasse o coração.E quando anoiteceu estava acabado, desanimado e revoltado com a humanidade ingrata.Nisso passou um pescador com uma sacola de pão e uma garrafa de pinga embaixo do braço.Olhou para aquele cachorro esmiliguido, tão abandonado e fez uma graça em sua orelha felpuda.Ah, não precisou de mais nada!
Entrou numa vila, saiu em outra...E lá iam os dois como se fossem parentes, ou amigos de infância, pai e filho.
Bidico era um homem solteiro, calado, sem ninguém que ocupava a mais de dez anos um quartinho ao lado do cais.Não gostava de companhia nenhuma.Não queria ter amolação e muito menos de um cachorro esfomeado que não lhe daria mais um minuto de sossego.
Saiu de fininho, mas quando voltava lá estava o infeliz balançando o rabo de alegria.Trancava a porta com um cadeado velho, deixando o atrevido jogado do lado de fora, com fome e com frio.
Não conseguia entender porque aquele cachorro abobalhado ainda insistia em lhe aborrecer. Parecia um chicléts na sua cola.
Então foi planejando um modo terrível de se livrar do infeliz...
No sábado foi bem cedo para uma pescaria em alto mar e agradou o bichinho até o barco.
Depois, quando estavam chegando perto de uma ilha, bebeu bastante só para criar coragem.
Atirou um pedaço de osso na água, ordenando que o cachorro buscasse imediatamente.
E mesmo morto de fome, sem comer a dias, não saiu do lugar.
Bidico resmungou bravo e começou a lhe empurrar com toda a força, mas perdeu o equilíbrio afundando de uma vez.
Como já estava bastante bêbado, não teve forças nem para gritar por socorro.Nisso o cachorro entrou em desespero.Pulou na água com tudo carregando a sua blusa com a boca e muito atrapalhado, puxou o pescador até a praia, quase sem fôlego.
Bidico nem conseguia chorar.Abraçou o pêlo molhado daquele animal, sentindo o seu coração bater mais forte e acelerado, junto ao dele.Agora Bidico não era mais um pescador solitário.
Tinha um quartinho onde guardava suas redes, um barco colorido de vermelho e um companheiro que lhe acompanhava em qualquer lugar.ERA um cachorro que tinha uma coleira de couro marrom, um potinho de água fresca com o seu nome pintado de vermelho: AMIGO.Este era o seu novo nome e somente Bidico sabia que ele nunca poderia ter outro nome, pois conheceu de perto a sua lealdade e principalmente a grandeza do seu coração !
Silmara Retti