Da memória dos cães - (18/12/2012)
No pequeno prédio onde moro, sem áreas de lazer, sem piscina... os moradores aposentados e/ou cuidadores de familiares idosos saem muito pouco de casa, alguns quase nunca, enquanto os demais vão logo cedo para os respectivos trabalhos e costumam voltar após às 18 horas.
Quase todas as tardes vejo, da minha janela, um casal de senhoras – mãe e filha – a passear com o seu cãozinho, cãozinho muito ensimesmado, mesmo austero, austero demais para sua idade – presenciei, por acaso, a chegada dele, ainda bebê, há cerca de três anos, no colo da senhora mais jovem. Nunca havia ido ao apartamento delas, mas, precisei fazê-lo na semana passada para lhes entregar uma carta que havia sido colocada na minha caixa de correio por engano.
Muito gentilmente fui convidada para tomar um café. A sala, parecida com a minha pela presença de estante até o teto e do computador que dá para a janela de frente à “minha” paineira (na verdade, ela é de todos que habitamos este prédio e dos outros todos, nos prédios em volta).
Ao tocar a campainha, fui anunciada previamente às moradoras pelos fortes latidos do seu austero cãozinho. “Então ele late?” pensei. Quando a porta se abriu, o “rapaz” me olhou fundo por um momento e então, voou ao meu pescoço. Voou para beijar-me, literalmente. Durante todo o tempo – não mais que dez minutos - em que permaneci ali, o cãozinho não me deu um segundo de sossego, como se estivesse a recepcionar alguém muito amado que não visse há muito, muito tempo.
A senhora mais velha, observou: “Que curioso, nunca o vi agir assim com ninguém estranho...”
A senhora mais jovem esclareceu: “Como ele podia esquecer de quem lhe salvou a vida?”
Minha memória deu um estalo, ai como a gente se esquece das coisas...
Há cerca de um ano, à noite, havia descido ao térreo, creio que para olhar a correspondência. Foi então que o vi, ao cãozinho, parado diante da porta de entrada do prédio. Meu Deus, se alguém entrasse naquele momento, ele poderia sair e se perder, ser atropelado, sabe-se lá mais o quê! Por instinto natural de proteção a uma criança, a um ser em perigo, aproximei-me e lhe perguntei o que ele estava fazendo ali. Olhou-me fixo e não respondeu. Então, eu ordenei “Vamos para casa, rapaz”! Abri a porta do elevador e fiquei aguardando. Ele me obedeceu, incontinenti. Subimos até o seu andar e o entreguei à senhora mais jovem, que já estava assustada com o sumiço do menino das duas. Passou-lhe um pito daqueles e me agradeceu do fundo de sua alma.
Eu me havia esquecido completamente do episódio, o cãozinho austero não, por isso recebeu-me com todo o calor e o carinho que os cães têm sempre para com seus donos e para com seus amigos.
Escrita terminada no início da tarde de 28 de maio de 2012.
P.S. O cãozinho desta crônica infelizmente morreu em 2013. Morreu de repente, do coração.(Nota de 02 de abril de 2014).
Amo o olhar deste cão (não é o cão da crônica), olhar a dizer tantas coisas...Por isso o trago aqui.