Odores da infância
Estou envelhecendo. Não é privilégio meu; todos estamos. Mas ao ribombar dos quarenta a idade faz um pouco mais de sentido. ‘Parece que foi ontem’ deixa de ser uma expressão banal e adquire, sim, um significado real. Porém, não sou saudosista mais que o necessário, ou que o saudável; tenho lembranças maravilhosas da infância e da adolescência, lamento algumas perdas, esforço-me por assimilar bem algumas mudanças que se operam desde minha juventude, mas nunca desejei voltar no tempo. Creio que o que há de melhor na vida é justamente essa expectativa, a possibilidade de reinvenção a cada dia, ainda que cada dia que passe é um dia que nos é subtraído.
Porém há algo que me faz falta, muita falta. São alguns odores que marcaram épocas felizes de criança. Minha memória olfativa é a que mais me emociona, pois os cheiros me remetem diretamente a uma situação, um local, uma vivência. Fica, contudo, quase impossível descrever odores: o perfume enjoado da castanheira do vizinho, que floria loucamente na primavera, e cujas flores brancas, minúsculas, formavam um tapete sobre a calçada, exalando seu perfume à distância; o cheiro da volta às aulas, que era um misto de madeira, leite com chocolate e papel. Papel novo, cadernos que acabavam de ser comprados, folhas ainda coladas uma a uma, e o ruído gostoso que faziam quando as separávamos. O cheiro do Natal, que se tratava de uma mistura de frango assado, doces e plástico - o inconfundível cheiro de boneca nova, sentido apenas e tão somente nessa época, a única do ano em que ganhávamos brinquedo.
Cheiro de dezembro: impossível descrever, mas era algo no ar, como um misto de chuva, mato e fumaça. Há também o cheiro das manhãs de domingo, do molho de macarrão que fervia desde cedo e impregnava a cozinha, a casa, a rua; de domingo também era o cheiro da missa - incenso e velas; as sextas feiras tinham cheiro de cera, aquela cera com odor característico de limpeza, que era usada para polir os pisos de madeira e que se espalhava por todo o bairro, juntamente com os tapetes nas janelas; à noite, quando a luz se acabava - o que era uma constante -, sob a luz (e o cheiro) das velas acesas meu pai fazia na parede seu teatro de sombras.
Minha mãe tinha nas mãos um cheiro bom de cebola e sabão. O cachorro tinha cheiro de cachorro, que eu adorava. A fazenda onde minha avó morava tinha cheiro de terra, e a cozinha, de lenha queimada. O pasto tinha cheiro de estrume. O quintal tinha cheiro de jabuticaba.
Não é que queira voltar no tempo, mas gostaria sim que o tempo voltasse, para que pudesse trazer com ele todos os odores gravados tão vivamente em minha memória... pois meu mundo infantil era um mundo de odores que provavelmente não sentirei nunca mais!