Liquidez

Hoje foi uma manhã peculiar. O mesmo metrô lotado, os mesmos rostos cansados, as mesmas pernas doídas. Não aconteceu nada de mágico – sem expectativas, desculpem – mas ainda sim peculiar.

Ao descer do metrô, dispersa em sono e música, senti alguém tocar em meu ombro. Virei-me. Era um menino que cursou o segundo grau comigo, bolsista igualmente como eu na época, mesma idade que a minha. Ele, gravata e terno; eu como sempre, coturno e regata.

Ele falou sobre as amenidades da vida, sobre rostos e nomes até então esquecidos e os rumos da vida dos mesmos rostos, ora conhecidos por ele, ora desconhecidos como num jogo de adivinhação, o bom e velho “mas, o que se deu de fulano? Será que...”. Eu só escutava, fingindo alguma curiosidade. Afinal, nunca especulei sobre os rostos e nomes esquecidos porque eram isso mesmo, esquecidos. “Formei-me em Direito, trabalho no Tribunal de Justiça... acabei casando com a Marisa, temos um casal de filhos, Bianca de quatro anos e João de oito!” – disse o rapaz inflando o peito orgulho e suspirando, provavelmente com saudades de casa. Não sabia quem era Marisa, obviamente.

“Mas e você, moça, o que anda fazendo?”. Eis que a famigerada pergunta pela qual temia desde o início do diálogo surge. Limitei-me a responder rápido sobre o trabalho que odeio – é, omiti essa parte do ódio –, sobre o fato de não ser casada nem ter filhos e que não me formei por não ser pró a ideia de conhecimento tecnicista e utilitarista. O rapaz me olhou com a sobrancelha esquerda levantada. Se era surpresa ou desconhecimento sobre o que acabei de dizer jamais saberei.

“Ah, mas você está ótima! Nunca envelhece não? Meu Deus, o mesmo rosto de dezesseis anos! Outras mulheres se matariam para ter essa sua genética, você sabe né?”

Senti meu rosto quente. Vergonha? Não, raiva. Como alguém tem a audácia de dizer que não envelheci? Eu mesma sentia o peso de cem anos nas costas! E não, nenhuma outra mulher se mataria por isso, afinal, sabemos que somos o colo do mundo desde sempre.

Eu poderia suspirar fundo, olhar bem nos olhos do rapaz e contar minha triste história de vida nesses trinta anos que meu rosto de dezesseis não contava. Contar a quantidade de psicotrópicos que tomo; falar sobre os abismos nos quais me joguei e que engoliram magistralmente; falar das pessoas que me enganaram, me abandonaram, me machucaram... falar até das pessoas que me amaram e que me fizeram bem. Tudo isso, rapaz, tudo isso me envelheceu. Poderia. Mas não fiz.

Sorri cordialmente e agradeci. Não valeria a pena, logo esse moço voltaria a ser de novo um rosto esquecido cujos rumos da vida nunca me interessaram com seus ternos de alta alfaiataria, seus filhos levados e sua esposa entendiada. “Então, tenho que ir, já estou bem atrasada!”. Foi a minha deixa para fugir. Ele falou alguma coisa a respeito de conhecer as crianças, marcar almoço, sair e tomar um chopp, “vamos marcar” – que nunca é marcado, graças a alguma deidade - mas já não ouvia mais. Despedi-me concordando com a cabeça.

Voltei a me dispersar em sono e música. Afinal, esse ato parecia ter mais profundidade que qualquer ser humano que me rodeava, ter mais profundidade que qualquer “tudo bem?" falado a esmo. Ter mais profundidade que qualquer rosto esquecido que o presente às vezes logra lembrar.

Ynis Avallach
Enviado por Ynis Avallach em 19/08/2016
Reeditado em 19/08/2016
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