HEI MOÇO!
Preferi um dos portões de acesso lateral, na tentativa de escapar das cotoveladas, naquele tumulto da entrada principal. Já se aproximava o final da tarde e a hora do rush no dia de finados se aproximava. Parecia que a cidade inteira estava visitando seus mortos, o cemitério estava apinhado de gente, muito barulho!
_ Olha a vela! Cada pacote leva uma caixa de fósforos de graça! Gritavam os vendedores.
Barracas de flores, naturais e artesanais, com arranjos diversos e sob medida para qualquer bolso. Bem próximo outras de lanches e frutas espalhadas sobre a calçada, e em parte da rua, congestionavam o tráfego de carros e pedestres apressados. Com um pouco de paciência, esquivos aqui e ali, enfim consegui entrar. Um garoto se aproxima com uma lata na cabeça.
_ Quer que lave o túmulo? “Paga” só cinco reais... Quer pintar?
Outros, por sua vez, ofereciam: _ Temos areia lavada, “cal branca e azul”
Com algumas velas e fósforos nas mãos, saí a esmo, caminhando com cautela para não tropeçar nas muretas que demarcavam as covas. Por vezes, pisando sobre algumas lápides desordenadas que bloqueavam a passagem estreita. Sentei-me numa delas para melhor avaliar a direção pretendida. Diante dos obstáculos experimentei, com certo alívio naquela tarde quente, o vento que insistia em balançar as poucas árvores e arbustos existentes.
Enquanto eu descansava um pouco pude constatar in loco a realidade que a desigualdade social causa... O quanto ela era grande, eu meditava!
Ali, onde de volta ao pó, todos nós (pobres mortais) nos tornamos iguais, eu observava que a maioria daqueles moradores se alojava em simples catacumbas, pintadas à cal, com cruzes rústicas e letreiros improvisados, sem nenhuma uniformidade. Algumas frases me chamavam a atenção pela sua ortografia, no mínimo engraçadas e pela declarada falta de concordância entre elas.
Grande parte desses sepulcros, simplesmente demarcada por montes de barro, que as vésperas do dia de finados haviam sido caprichosamente capinadas pelos parentes, recebendo aqui e ali uma camada de areia. Outras tantas, gradeadas de ferro ou madeira, lembravam jaulas... De igual modo, todas elas demonstravam zelo ao descanso dos seus entes queridos.
Mas um verdadeiro contraste eu pude notar, pois grandes jazigos se destacavam pelo requinte e luxo, com acabamento em mármore, granito e azulejos com pinturas especiais. Jarros e castiçais de metais nobres adornavam-nos e anjinhos celestiais guardavam os monumentos com fotos retratadas em fina louça. Ladeados por imagens de “santos fortes”, em meio a belos jardins, com direito a “banquinhos de praça”, tanta e tamanha era a pompa. Estas eram habitadas por quem “fora” rico/a e ainda que tenha passado desta ostentava com clareza sua antiga condição social.
Lindas lápides, ocupando áreas onde caberiam vários desafortunados desta vida! Sabem-se lá quantos foram desalojados, quantos restos mortais daquelas que literalmente não tinham aonde caírem mortas, cederem lugar a construção de tais edificações... Certamente, com escrituras registradas em cartórios, por seus moradores que, em vida, se preocuparam com a sua “última morada“.
Ali, as pessoas conversavam, contavam histórias de vida recheadas de alegrias, mas também de tristezas. Em alguns semblantes se percebia a saudade dos amados ausentes... Noutros, talvez, o alívio de opressores que partiram, deixando os seus mais tranquilos. Envolto em pensamentos e reflexões, fiz minhas orações aos parentes idos e, também, por todas as pessoas que partiram desta para a outra vida. Pedi a Deus que lhes concedesse a sua glória eterna. De repente, um leve toque no meu ombro, trouxe-me de volta ao mundo dos vivos.
_ Hei moço!
Uma voz me chamou. Assustado, olhei para o lado, pois anoitecera e eu nem me dera conta! Pasmei! Não fosse a presença de tantas pessoas, eu teria morrido de medo ao deparar-me com aquela senhora de vestido branco. Por entre seus cabelos longos e desalinhados passava a claridade tênue das luzes das velas, dando ao seu rosto um aspecto sinistro. Ela trazia nas mãos uma coroa de flores lilases e com um sorriso amarelo, pedia licença para que pudesse venerar alguém que ali, certamente, descansava em paz!