Assim ou...nem tanto 59
Nascimento
Nasci quando deixei de me procurar. Estava onde meu espírito estivesse com ou sem o corpo. Viver só pelos sentidos foi, de certo modo, perder-me em atordoamentos que acabaram sem memória. A pele e o sangue, o sexo e a vontade de morrer no centro de um grito, num soluço profundo da terra, num êxtase sem rosto onde o caos acende fogueiras e me queimava de maneira inconsequente. É verdade que o espírito me exigiu o corpo para ser pleno, empolgamento, explosão, enxurrada, vulcão. O espírito sem excessos é duro, racional e frio, razão suficiente para não me procurar nele. Via-me vagamente corpóreo, leitoso e leve sempre que me demandava em nublosos tempos de ausência, de morte interior abissal. O físico ficava à porta na agonia e a paixão, o amor, todos os delitos e transgressões ficavam com ele para se depurarem de culpas e eu estava, ubíquo ou incompleto, onde se encontrassem, potenciais, todos os prazeres. Quem procura ainda não achou, disse a consciência ao pensamento. E revi o meu passado, as histórias do começo, o tempo em que me percebia espiado sem haver quem, neste mundo, tivesse o menor interesse nas minhas divagações. Importavam-me lugares escusos, sensações puras, meandros tenebrosos onde encontrei mil almas perdidas em corpos esplendorosos, em juventudes libertinas, em gente que estava nos antípodas da pureza. Mas ali eu era um fragmento e a minha porção nobre fingia não me pertencer. Sem solução, alienei-me. Muitos dos que se perdem na pesquisa, acham verdades por acaso. E nasci sem sinal, sem referências, um entre milhões. Pequeno, vulgar e sujo. Quando me recuperaste suspeitavas que eu seria um diamante por polir mas, não, eu era apenas carbono, carvão de pedra sem valor comercial. Aceitei-me porque me usas como jóia. Sou opaco e negro mas brilho muito nos teus olhos.