Já foi tarde!
O que pode fazer uma pobre e indefesa senhora, aos oitenta e oito anos de idade, a não ser descabelar-se toda de saudade do falecido? Muitas coisas ainda, mas Dona Neném não pensava assim, porque quando engavetaram aquele “presunto mofado” foi um forrobodó!
O pior era que não se tratava de um presunto fresco, não mesmo.Seu Bituca foi para o beleléu há mais de 30 anos atrás e com o perdão da palavra: foi tarde.Já estava fazendo hora extra aqui na Terra, fiscalizando a vizinhança toda com seu olho de luneta.Sabia de tuuuudo! Quem dormia com quem, quem estava com alguém ou quem estava sem ninguém. Naquela época a própria mulher sentia calafrios de raiva ao ver sua cara amassada, onde cabiam apenas os óculos do tamanho de um armário embutido.
Que castigo, hein, dona Neném?Aquele fofoqueiro era a atração turística do bairro, mas depois que deu o último suspiro e se foi, ela nunca mais se conformou.Caiu de paixões pelo falecido e gamou, como nunca.Caramba, nem quando ele era vivo, lhe tinha tanto amor! – comentavam, em coro.
Aquela assombração macabra conseguiu se transformar no mais novo Santo da cidade, graças a Dona Neném, que era a sua principal devota, acendendo mil velas coloridas na foto do falecido.
- Que saudades de Bituca ! –
Ao completar mais de 30 anos que seu rei havia partido, lhe restou apenas uma coisa a fazer: morrer para o mundo também.
Dona Neném vivia na mais profunda melancolia, desejando apenas ir ao encontro de seu fantasmagórico Bituquinha.Não comia, não bebia e não vivia.O que não compreendia é que na verdade tinha muita lenha pra queimar; muito que fazer, o que sorrir e o que viver.
Nada mais fazia a alegria de dona Neném, que pendurava os antigos badulaques do seu amado amante por todos os cantos da casa. Tocava na vitrola as marchinhas preferidas de Bituca e continuava a fritar os bolinhos de chuva que ele tanto gostava, choramingando pelos cantos:
- Sente o aroma, Bituquinha ! Fiz pra você.
Mas o que não sabia era que lá do além ele já estava se remoendo de raiva e não conseguia ter mais o descanso eterno.
- Esta Neném é um porre mesmo! - pensava com seus botões, muito bem acomodado sobre uma nuvem ortopédica.- Mulher chata do caramba! Sai do meu pé, chulé!
Então ele pediu licença para os seus Superiores e resolveu lhe fazer uma visita-surpresa, daquela do tipo relâmpago.Pronto, apareceu com seu famoso terno de festa junina azul-marinho, barba feita e gel no topete.Só que estava bicudo, com a cara feia e pálida de raiva.Dona Neném quase desmaiou de alegria, já pulando em seu cangote esfarelado pelo tempo.
- Até que enfim veio me buscar, meu gato.
Bituquinha continuava irado e lhe deu um empurrão de dar dó.
- Me poupe, mulher. Já me bastam os anos de martírio que passei ao seu lado.Agora quero sossego e vim do Além apenas para lhe pedir trégua.Vá bater um tanque de roupa suja, Neném.Coisa desagradável, pô.
Que vergonha! Nisso seus olhos racharam ao meio de raiva.
Bituquinha não tinha mudado em nada e era o mesmo bocudo de sempre.Dona Neném nem esperou que ele terminasse o discurso e foi quebrando tudo ao seu redor; deu uma bicuda no seu retrato enfumaçado e um karatê nas velas coloridas.Abriu as janelas da casa e colocou um samba na vitrola, mandando aquele fantasma fofoqueiro pro espaço.
-Xoxô encosto brabo!Vai abaixar em outra freguesia, seu picareta de uma figa! Quero cuidar de mim, baby.
Fazia um lindo dia e ela merecia ser feliz também.Soltou uma gargalhada gostosa e permitiu que o sol entrasse com toda a sua energia para dentro da alma.Agora que Bituquinha estava mortinho da Silva , ela teria todo o tempo do mundo para a caminhada na praia, as aulas de yoga, de crochê, de tricô ...Ou até mesmo para tirar um cochilo na rede.Não importa.
Dona Neném aprendeu com o próprio falecido que viúvo é quem vai e nunca é tarde para recomeçar, desenterrando todos os sonhos e desejando recuperar o tempo perdido, livre, leve, solta e cada vez mais cheia de vida!
Publicado no Jornal A Cidade - junho de 2007
Silmara Retti