UM SOBREVIVENTE DAS DERRUBADAS DO RIVERIA

UM SOBREVIVENTE DO RIVERIA

Em 1982 fui supervisionar obras no Mato Grosso. O mapa do Mato Grosso possui na sua parte norte, um triangulo, que é formado por dois rios: do lado direito (este) o rio Teles Pires e do lado esquerdo o Rio Juruena (oeste). Do encontro dos dois é formado o Rio Tapajós, que divide os estados do Pará e Amazonas. O Rio Apiacás é um afluente do Teles Pires. Uma das minhas obras era no Salto do Apiacás, pouco abaixo desse triângulo, em plena selva amazônica. Na implantação das obras, o pessoal armava uma estrutura de paus cortados no local e cobria com lona preta. Instalava umas redes para dormir, uma chapa de aço apoiada em pedras como fogão. Comida era feijão, arroz, carne seca, tomate e cebola. Sobremesa, marmelada. E dava-se início à construção do canteiro de obras. Distante 1000 km de Cuiabá, não havia estradas asfaltadas e muitas vezes os caminhões levavam mais de uma semana para chegar à obra. Na minha primeira visita às obras da UHE (Usina Hidro Elétrica) de Salto Apiacás, o engenheiro da obra, Luís Roberto Menin, me recepcionou e acompanhamos o andamento dos trabalhos. Hora do jantar, fomos para perto do fogão. De imediato, o cozinheiro foi mostrando o que tinha preparado, fazendo diversos comentários da precariedade da comida, disse que sabia preparar muitos pratos e, assim que a cantina da obra ficasse pronta, mostraria melhor suas habilidades. Era um cara falador, contador de histórias, que tinha uma vasta experiência em trabalhos na região. Interessei-me em saber mais sobre o sujeito e, após a refeição, continuei a conversa. Acostumado a trabalhos duros e conhecedor da região, Francisco tinha muito que contar.

Originário de Campo Grande, na época que o Mato Grosso era um só estado, ele foi “recrutado” para trabalhar em derrubadas de mata para implantação de fazendas. Derrubado é o têrmo que se usa para o desmatamento feito com machado, foices e moto serras, a fim de possibilitar a formação de fazendas. Serviço feito sem autorização e planejamento, a margem da lei, um crime ambiental. Mas os grandes proprietários de terras contratavam um “empreiteiro de derrubada”, acertavam um preço e aguardavam a queima das árvores cortadas. O Riveria, de Cuiabá, era um dos mais famosos empreiteiros de derrubada e o seu “modus operandi” exponho a seguir. Acertado o serviço, Riveria se deslocava para Campo Grande para contratar homens para o árduo trabalho de desmatamento. Procurava o delegado, solicitava os homens que precisava e adiantava um bom valor em dinheiro para esse “recrutamento”. Os investigadores saiam pelas ruas e prendiam os moradores de ruas, bêbados, homens sem documentos, etc. Chegados à delegacia, eram embarcados em caminhão com grades. Completada a lotação, iniciava-se a longa viagem até o local dos trabalhos. No caminhão havia cigarro e cachaça à vontade. Não havia para quem reclamar e as paradas só para bastecer o caminhão. Eram recepcionados pelo próprio Riveria e escutavam umas “orientações” sobre o trabalho. Havia para quem quisesse roupas e calçados apropriados, cigarros, cachaça e comida. O salário era por dia, e tudo seria descontado no acerto final. Também eram apresentados aos pistoleiros que se encarregavam de manter a ordem no serviço, o comportamento que deviam ter com os moradores das fazendas. Eram seriamente ameaçados em caso de desobediência. Depois de tudo, Riveria, com revolver e um chicote de couro na cinta falava: “- Na cidade eu sou o Riveria. Aqui eu sou o Revirado!”. E os trabalhos eram iniciados. Era uma luta contra o calor, malária, onças, cobras, índios, etc.. Mas o pior de tudo era o Riveria, um verdadeiro carrasco. Todos os deslizes eram severamente castigados conforme ordenado pelo Riveria e executados por seus pistoleiros. Penas leves eram açoites com vara apropriada nas costas. Francisco contava que mais de seis ou sete açoites faziam os mais resistentes desmaiar. As penas mais cruéis eram cortar fora o calcanhar ou o dedão do pé. O camarada ficava sem equilíbrio e sofria muito. Certa feita, Francisco tropeçou e deixou um caldeirão de feijão cair ao chão. Riveria chamou um de seus homens: “- Esse menino é bom. Dá uma só para ele prestar mais atenção”. Francisco cortou a vara, deu uma passada na fogueira, entregou para o açoitador, tirou a camisa e virou as costas. A dor foi tanta que se ajoelhou. Trazia nas costas uma cicatriz, que nos mostrou. Quem se revoltava ou tentava fugir era morto. Depois de meses de trabalho, terminado o serviço, era feito o pagamento. Era mais ou menos assim:

“- Dez maços de cigarros, dois pares de sapatões, dois macacões”.

“-Seu Riveria eu não fumo e usei minhas roupas!”

‘-Não fumou e não usou macacão porque não quis. Tava aí, era só pegar!”

Poucos tinham saldo a receber.

Após esse trabalho, Francisco trabalhou em um garimpo, como mergulhador. O cara fica no fundo do rio, manejando um sugador de areia, que é lavada e peneirada, deixando as partículas de ouro em uma esteira. Após três meses de trabalho tinha direito, pela suas contas, a 450 gramas de ouro. Foi ao barraco do dono do garimpo para fazer um acerto. O cara colocou o cinto com que tinha um 38 com cartucheira e falou: “- Eu fiz suas contas e voce não tem nada a receber.”

Francisco: “-Se voce não tivesse com esse revolver eu acho que teria, mas vou pegar as minhas coisas e vou embora.”

O dono: “ –Passa aqui que eu te levo até a estrada.”

Conhecedor de como as coisas funcionavam, Francisco foi ao seu barraco, pegou tudo que tinha (inclusive umas poucas pepitas que havia roubado), saiu pela janela dos fundos, se embrenhou pela mata. Após dois dias de caminhada: “ – Escutei o urro da mãe do trecho, corri e achei a estrada. Embarquei e fui para Sinop”. Mãe do trecho era o ônibus.

Nunca mais trabalhou com derrubada ou garimpo.

Paulo Miorim

15/08/2016

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 15/08/2016
Reeditado em 19/09/2020
Código do texto: T5729746
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