Doente na madrugada

     1. Estou doente.
Meu nariz está avermelhado e destilando.
Cadê o descongestionante nasal? Reviro minhas gavetinhas, e nada das gotinhas.  Meus olhos estão irritados. Cadê o Lavôlho? Remexo tudo, e não o encontro. Diabo!
      
2. Neste exato momento sou um doente solitário e desprotegido. Impaciente, ando de um lado para o outro do meu modesto quarto de não menos modesta república, esbravejando.
     
3. Logo mais, farei prova na Faculdade de Direito. Mas não aguento nem olhar pros livros. Ali estão eles sobre a estante que improvisei, unindo caixotes de sabão, cedidos por Basílio. 
Basílio é um espanhol mal-educado, mas bondoso, dono do armazém da esquina. No seu boteco, vez em quando, como um robusto sanduíche de mortadela, com suco de laranja. Meu jantar?
     
4. São duas da madrugada. Ratinhos peraltas, impertinentes, correm pra lá e pra cá; tomaram conta do meu quarto. 
Agora são os grilos. Não param de cantar. Ouço-os, mas não os vejo; os grilos cantam escondidos.
     
5. Irrita-me o tic-tac do meu despertador, que repousa sobre o meu tosco criado-mudo. Ao seu lado, uma imagem de São Francisco de Assis e um porta-retratos perolado.
      
6. As luzes da minha rua continuam apagadas; e as do meu quarto, também. Meu velho abajur, que não é lilás, sumiu na escuridão.      7. E a madrugada avança.  Não consigo dormir. Cadê o Paciflorine? Não comprei. Recorro a água com açucar, eterna receita de minha mãe. Mas a água da moringa está morna. É bebê-la e vomitar. Não tenho geladeira.
     
8. Ponho o termômetro, e ele acusa: 39 graus. É muita febre! Não tenho um só remédio para derrotá-la. Me lembro que um banho frio resolve. Abro o chuveiro, e a água não cai. Continua faltando água no meu prédio, Pôrrrra!!!
     
9. Meu quarto tem, apenas, uma janela, que não dá pra a rua. Dá pro interior do meu edifício, que é de dois andares. Moro no térreo; vivo sufocado. Mal posso ver as estrelas. A lua? Só a encontro por alguns segundos. É horrível o meu quarto nesta imprensada, mas queridíssima república. Fazer o quê?
     
10. A cidade dorme.  Até o armazém do Basílio, acolhedor refúgio de boêmios e notívagos, está fechado.
     
11. De repente, ouço um galo cantar. É o galo da minha vizinha, uma senhora do sertão. Vende patos, galinhas e capotes. E ovos trazidos do interior.
     
12. O sol começa a invadir, lentamente, meu quarto, que não tem cortina. Nunca liguei pra cortinas. À minha cama o sol é sempre bem-vindo... O dia está nascendo.  Ponho o termômetro outra vez, e vejo que a febre se foi.
     
13. Vou tentar dormir um pouquinho. Na porta do meu quarto, ponho este aviso em negrito e letras garrafais: se alguém me procurar, diga que morri...

       (Rua da Faísca - 20/7/1958 - Salvador)

                    PS - Isso me aconteceu na madrugada do dia 20 de julho de 1958. Faz, portanto, quase meio século que escrevi esta crônica.
      Durante todos esses anos ela esteve em lugar por mim ignorado! Encontrei-a, hoje, no momento em que, misturada a velhos papéis, ela caminhava, resignada, para a lixeira. 
      Resolvi, então, publicá-la no meu Site. E o faço, com aquele gostinho de saudade...

 

 

 

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 20/07/2007
Reeditado em 27/09/2019
Código do texto: T572700
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