Cuidado e Afeto
Tenho experienciado histórias de pessoas enfermas há longa data, e com frequência rememoro, apesar da péssima memória, algumas narrativas de vida que me marcaram pelo afeto. Lembro claramente da história de um homem internado no hospital, por volta dos 30 anos, negro, que morreu de infecção generalizada causada por negligência no tratamento de uma apendicite aguda. Ele, quase morto, com máscara de oxigênio para que o ar adentrasse o pulmão e sondas para que o alimento escorresse pelo esôfago, beijava a filha de cinco anos e sorria simpaticamente, como se a vida lhe reservasse a eternidade. Morreu uma morte indigna, sofrida, completamente infeccionado, e sorrindo. Recordo-me também a mãe que visitara o filho de 20 anos em coma na UTI após um acidente de transito. Chorava desesperadamente ajoelhada aos pés do leito, sabendo que a alma do filho esvaziava-se suavemente. Outra centena de casos passou por mim e se perdeu na história. Possivelmente nenhum será lembrado em lugar algum, porque a memória, quando não narrada, é um sentido que se esvai com o tempo.
A profissão que escolhi viver, quando ainda tinha 16 anos, foi me moldando à escuta, ao olhar e ao toque. Narrativas foram sendo construídas e compondo um mosaico de vida. Inicialmente me propus a ser enfermeiro, mesmo sem muito compreender o que isso significaria nas minhas andanças. Almejava cuidar de pessoas de alma ferida. Fui construindo um itinerário livre, que inicialmente passou por hospitais: UTI, hemodiálise, emergência, internação; atenção básica: assistência e gestão; e ensino e pesquisa. Uma prática sempre comprometida com o viver do usuário, com o indivíduo que padece cuidado.
O ato de produzir um cuidado humanizado vai muito além do prescrito positivista de livros e protocolos clínicos e assistenciais de profissões da área da saúde. Envolve afeto entre o profissional e o usuário no momento mágico deste encontro. Envolve olhar nos olhos, apertar a mão, pedir licença, agradecer, se desculpar, cumprimentar, responder. Um misto de verbos que produzem potência. Mais que aplicar uma injeção com impecável destreza, ou acertar precisamente na prescrição terapêutica. Desconstrói o mito instituído ao longo do tempo de o profissional deter um suposto saber supremo, ao passo que o usuário do serviço de saúde é passivo e apenas recebe um calhamaço terapêutico. Portanto, envolver relações de poder!
Nessas andanças alguns fatos sempre me causaram náuseas e repúdio, e a indiferença com o outro me incomoda muito. Quando a situação é extrema acabo por vomitar! No último mês, saí do cômodo lugar de ser profissional de saúde e adentrei no campo da vivência como paciente. Minha mãe teve um acidente vascular cerebral e experimentou a negligência, flertando com a vida como o caso que narrei, do homem que sorria para a morte. Peregrinou por sete médicos e outros profissionais com uma veia entupida no cérebro, e nenhum pôde de fato produzir o necessário cuidado. Por fim, internada em um renomado hospital “público” e universitário de Porto Alegre, de grande porte e de recatada reputação, experimentou não a negligência, mas um cuidado descomprometido, vazio, des-produtivo, oco, raso e sem sentido. Com seu problema clínico perfeitamente sanado, deixou a instituição e eu fique com a vaga sensação dela não ter produzido vida nos dias que esteve reclusa ao leito. Não produziu por que quem lhe cuidara não proporcionou a essência do afeto. E a vida reclusa foi se dissolvendo por entre os dedos.