IMAGENS REFLETIDAS

(...) O Brasil negou a si mesmo. Não houve luta armada; passeata dos cem mil; prisões e torturas; resistência e mortes... – Pelo menos, não houve para mim. Eu nasci em 1969. E o homem andava na lua. O apostolado foi meu primeiro opressor. Tinha ficha na igreja. E todos aqueles azulejos e vitrais: anjos com expressões ameaçadoras; serpentes e demônios; cabeças decepadas por espadas ... Davam-me ainda mais pavor– Até a obra de Deus foi arrolada na batalha.

Eu cresci rodeado de cidadãos-mochos, Inominados. Heróis, nunca! A garantia era estar estar vivo... – Só a subversão podia me redimir daquela humilhação. Vivíamos em dois “Brasís”; e o meu era o do “Eu Te Amo, Meu Brasil; eu te amo”... - Aquela falsa propaganda, veiculada à exaustão, feriu de morte os nossos sonhos.

Cantávamos o hino nacional, perfilados no pátio do Colégio Estadual Pedro Aleixo (um udenista mineiro que se aliara às forças armadas), às quintas-feiras, enquanto a bandeira brasileira era hasteada. Ao final da encenação, voltávamos para às salas de aula, onde nos doutrinávamos com a “Moral” e o “Civismo”. Viramos colecionadores de selos de ex-presidentes e figurinhas da copa de 74... - Como bons filhotes da ditadura.

As TV’s exibiam uma programação alienadora; as músicas de Roberto Carlos eram aprovadas; e as pornochanchadas passavam no cinema do Prado... - Enquanto isso, os milicos fodiam o país. – E nada de saraus. Qualquer expressão artística era censurada. A criatividade estava subordinada ao autoritarismo. O resto era contravenção: beijos na escadaria do colégio; uma melodia assobiada de Chico; versos rabiscados no guardanapo... – Só depois alguém reproduziu poemas mimeografados. A imprensa vivia sob a lei da mordaça.

Não vi “Calabar”, de Rui Guerra e Chico Buarque. Lamarca e Marighella eram sobrenomes proibidos. Só li “Os carbonários”, de Alfredo Sirkys, em 1985. Assim, de costas para a realidade, apenas imagens refletidas... - Qual era o meu Brasil? – Antes da resposta, a ditadura acabou... - Por ela mesma. Não quero contar mentiras para meus filhos, pode parecer que ainda estou me escondendo. Embora, ainda há caudilho escondido no vergel.

Espero no dia em que a coragem vai nos rebelar e seremos um só bando: heróis, covardes e inocentes. Só não indulto os ímpios. Então, fica decretado que nesse dia (dia de nossa fortuna), marcharemos nus e reegueremos cada período destruído. Ao exílio, condenaremos os aniquiladores de nossos gozos. Não gritaremos palavras de ordem, mas também não estará proibido.

Reabriremos todas as portas e ressuscitaremos os mortos de boa-fé. Daremos a cada poeta o direito à declamação ao ar livre. Vandré será nosso alto-falante. Os Generais serão deportados; e para cada soldado uma flor. A parada de sete de setembro deixará de existir; ao invés disso, um berro de independência. Nada de ordem e progresso - Respeitaremos as diferenças. A religião será o pão de cada dia. Um minuto de silêncio será respeitado para qualquer funcionário público que for declinado à sepultura. 1964 será proclamado o ano que não existiu; assim como as baionetas e os camburões. O novo regime será a liberdade; e o presidente Carlos Drummond de Andrade.

Misael Nobrega
Enviado por Misael Nobrega em 09/08/2016
Reeditado em 19/02/2024
Código do texto: T5723226
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