SEMENTE DO CACAU

Sempre bom recordar o passado... Saga da fundação de uma cidade na zona do cacau – TOCAIA GRANDE – A FACE OBSCURA: 512 páginas, 1984. Bahia, na opinião de JORGE AMADO, “fundamental na cultura brasileira desde Gregório de Matos – mistura de sangue, raças e culturas: miscigenação e sincretismo”. Observar a vivência concreta do universo, diretamente a realidade... um neo-realista, ele? Na verdade, mescla de realismo e romantismo, ou seja, documento e poesia... Método mesclado e aleatório de produzir: ir escrevendo por instinto, como quem constrói um prédio às cegas, sem estabelecer nada, sem pró-projetar a planta, de repente mais um quarto, um puxadinho, um terraço ajardinado......... O ROMANCE -- Receita de “como formar um povoado no meio da mata baiana, nos primeiros anos do século passado, expansão dos cacaueiros com seus frutos dourados” – honra precedendo a lei e a coragem... poder vinha depois. E é o que JORGE AMADO /obra essencialmente regionalista: ele, o ‘coronel’ manda-chuva das letras nacionais/ falou e fez: “Quero descobrir e revelar a face oculta.” Ir ao começo bem fundo e resgatar estórias. Fácil para ele armar uma grande tocaia e reunir todos os elementos de seu convívio (que conheceu na infância, vasto mural de tipos – declara-se incapaz de escrever sobre aquilo que não viveu) e inspiração: latifundiários, prostitutas, retirantes, jagunços, assassinos, fugitivos... e imigrantes árabes, desta vez um turco vigarista... todos sob as ordens de um pistoleiro promovido a ‘capitão’ da Guarda Nacional. Essa gente nasceu das memórias do escritor, infância no lugar que ‘era’ Pirangi e depois virou Itajuípe, assim como Tocaia Grande virou Irisópolis. Pois é... De lugar de pernoite para tropeiros, Tocaia Grande passou a arruado, lugarejo, arraial, povoado, cidadela... enfrentou enchentes e peste, mas chegou a ser a cidade de Irisópolis. Não neste livro um bando de personagens girando ao redor de uma figura central, principal – não há espinha central, aqui um trabalha por todos e todos trabalham para ele: o centro da trama é o lugarejo. Vasto mural: cerrado, cemitério de emboscadas, pouso de tropeiros, arruado de prostitutas (elemento indispensável para o funcionamento fisiológico de todas as utopias do escritor), terra da perdição, casa de Satã... em oposição a povoação de bons modos. (Esta última existe?) Local ideal para se viver, paraíso de mato - em “TOCAIA GRANDE”, simultânea narrativa de utopia e de romance. Utopia não de ‘futuro róseo’ para o socialismo (autor, deputado comunista na Constituinte de 1946), mas nostálgica, de solidariedade, num vago tempo do início da República, ricos e pobres respeitando a palavra empenhada, nobres no brio e na honra, dispensando o uso do papel timbrado. Pobres e ricos, coronéis e jagunços, todos unidos, mesma estrutura na lealdade e no respeito, no brio e na hora – traição era paga com a morte... Em “TOCAIA GRANDE – A FACE OBSCURA”, nenhum coronel é personagem fundamental, embora o livro tivesse dois bastante importantes, o Boaventura Andrade e o Araújo. Mulheres? Destaque para a mais importante prostituta, a sábia Coroca, de 50 anos... a bela Bernarda, perseguida por uma praga cigana e um grande amor. Homem sempre com mulher à mão – se dois juntos para uma só, logo o que sobrar terá nova companhia. O livro “TOCAIA GRANDE” começa com uma guerra entre ricos – a utopia se constrói sobre a base da solidariedade. Para Fadul, homem do lugar, ‘quem mexe com um mexe com todos’, para os tropeiros circulantes a lei da vida é outra: ‘cada um por si e Deus por todos’. De certa forma, “TOCAIA GRANDE” representa o ponto de confluência entre os romances ‘pesados’ do cacau e a poesia ‘leve e alegre’ dos tipos caricatos dos romances pós-58 (ano de “Gabriela”). Apuro maior no estilo – autor diz ter sido o livro mais difícil e lento que escreveu, entre 1979 (ou 1982?) e 1984, amadurecendo a idéia do romance, em São Luís, no Estoril, na Bahia e em Petrópolis, sem a antiga rapidez incrível de uma única semana. Mais exigência de si próprio, mais cuidado, páginas reescritas em média cinco vezes... ZÉLIA depois passava a limpo (ele datilografava bem menos). Principal temática: o ciclo do cacau. Ao longo da obra, a recriação da Bahia, na dimensão de terra de caboclas e jagunços, mitos africanos, combates de coronéis, folclore e verdades. A festa é elemento importante que resume o canto pela vida (mais para a emoção de ALENCAR que para a finura de MACHADO). Descrição e mostra do encontro dos moradores num reisado, numa grande comunhão lírica: “Dançaram e cantaram, comeram e beberam, folgaram à la vonté, em diferentes casas e locais.”

PERSONAGENS DESTACADOS – CAPITÃO NATÁRIO DA FONSECA – Mata numa emboscada o inimigo político do coronel local e ganha terra onde virá a ser um novo (menor ainda) latifundiário. Quem manda, a autoridade mesmo não é nenhum capitão de verdade; é apenas um pistoleiro calado e honrado que ascendeu de jovem fugitivo da Justiça a capanga, capataz, chefe de jagunços, homem de confiança, pau para toda obra. Todas as tensões do romance passam por ele e dele são transferidas ao resto do bando. Não diz o que pensa, é de pouco falar, sua vontade e chegada não são sempre surpresas. Mais tarde, espalhou uma notícia, diz-se morto para poder sobreviver. Se o autor de fato o matou, jamais saberemos. E se alguém coronel precisar dele, certamente ressuscitará. // “Face larga de índio, cabelos negros, escorridos, maçãs do rosto salientes olhos miúdos e ardentes (...) título de capataz (...) responsável pelo trabalho nas roças de cacau, nos últimos tempos se ocupara sobretudo com a briga, entrevero mortal, que dividia os poderosos senhores.” // Na vida real, inspiração no ‘capitão’ Brasilino José dos Santos, jagunço sergipano nascido em 1885, que participou das guerras do cacau baiano, ganhou fama de valente, conheceu muito jagunço de coronel, matou muita gente, escapou de tocaias, fugiu de prisão, ajudou a cuidar de um povoado emergente, fez doze filhos, virou fazendeiro em Pirangi / Itajuípe e morreu em 1966. --- FADUL ABDALA – Filho de Marama, rei dos bordéis, devoto do Deus dos maronitas, que lhe aparece em sonhos e guia sua vida (nada a ver com o Nacib de “Gabriela”). Nos negócios, birosca para venda de cachaça-rapadura-farinha, um vigarista e engana por vocação, sem a avareza para chegar a mau caráter. Atleta sexual, carece de sensualidade. Enorme, só teme NATÁRIO; engana ciganos e xinga até seu Deus. Levou para o arruado sujo a paródia dos “Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas, quando defendeu as marafonas do lugar de um grupo de visitantes: “Se o amigo quiser obrigar elas, a gente briga Aqui, é assim; mexeu com um, mexeu com todos. (...) É a regra do lugar.” // “Libanês de estatura agigantada, todo ele desmedido – mãos e pés, o arcabouço do peito e a cabeçorra –, ganhara nos cabarés de Ilhéus de Itabuna, o apelido de Grão-Turco, mas nas estradas de cacau era conhecido por Turco Fadul, os mais simplesmente de Fadul, na voz dos alugados que enxergavam nele a providência divina.” - BERNARDA – “A moça vinha chegando do rio, molhada da cabeça aos pés, na mão as peças que queria lavar; uma calçola e uma anágua. O vestido de bulgariana, ensopado em cima da pele, colava-se ao corpo escuro e se exibia; dos cabelos soltos, escorria água, pingos no cangote.” --- TIÇÃO - Do ciclo de preciosos épicos dos romances do cacau (início em 1933 com “Cacau”, continuado com “Terras do sem fim”, em 1943, e encerrado com “Gabriela”, em 1958, este último livro o autor chama de ‘fase poética e crônicas galhofeiras’), chegou a Tocaia Grande o personagem TIÇÃO, ferreiro, um descendente de outros negros de corpo impecável, do Recôncavo Baiano, perseguidos por poderosos e por mulheres – maus pensamentos e feitura no candomblé (ritual religioso africano duramente perseguido pelos colonizadores portugueses, teimosa e corajosamente mantidas as tradições culturais em todos os tempos). Um porco para Omulu, vendo Iemanjá nas águas do rio, quebrando mau-olhado com Obaluaê, corpo fechado sob 7 lados, sob a proteção de Oxalá e Xangô... Ele bate o ferro e segue os santos para viver em paz. O fim da escravidão era muito recente e o romance se passa no começo do século.

NOTAS DO AUTOR:

Porque demorou a terminar o livro começado em 1982......... Viajou. Intervalo para ser agraciado com pelo governo francês com a Legion D’Honner, a mais alta condecoração da República Francesa – setembro/1984, no Palacio Eliseo, em Paris, comenda entregue pelas mãos do presidente François Miterrand. Neste mesmo setembro, Prêmio Moinho Santista, no Palácio Bandeirantes, em São Paulo, cerimônia presidida pelo Governador Franco Montoro.

INFORMAÇÃO:

Seriado – TV Manchete – 1995 / 96.

FONTES:

“A face obscura” – Notícias da Record – n. 26/1984 // “O tiro certo do coronel” – Revista VEJA, SP, 14/11/84

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