PICADINHOS ROSEANOS

1--VAQUEIRÃO - Na cidadezinha de Andrequicé, às margens do Velho Chico, pouco mais de 1000 habitantes (em 1985), a 270km de “beagá”, MANUEL NARDY, com a segunda mulher, numa casa de três cômodos e fogão de lenha, igual como o escritor JOÃO GUIMARÃES ROSA o descreveu há décadas, transformando-o em MANUELZÃO, capataz altivo, vaqueiro de compleição rija e seca, celebrizado personagem no livro “Manuelzão e Miguilim”. Barba patriarcal amarelada pelo fumo de rolo, pensão do Funrural (ainda existe ou tem outro nome em 2016?) e raros biscates, tocador de boiada dos fazendeiros vizinhos. “O sertão acabou, tudo agora cheio de eucaliptos até o Piauí.” Cerrado tomado por culturas, bois viajando em caminhões por estradas asfaltadas, parece que só sobrou mesmo este vaqueiro... que se fosse para tanger boi brabo “esqueceria” até a idade. Numa empreitada, criador e criatura se conheceram em 1952 - livro traduzido em 5 idiomas (até 1985), compilação de estórias do sertão mineiro, nasceu da viagem de Rosa ao lado de Manuelzão e mis nove vaqueiros: dez dias, boiada de 800 cabeças pelo sertão, o escritor a cavalo, caderno amarrado ao pescoço, só servia perguntar sobre o passado. No livro, um conto inteiro dedicado à saga deste vaqueiro e sua iniciativa de construir uma capela em pleno sertão. Mesmo sabendo ler e escrever, não teve ideia de anotar o que Rosa dizia de outros países. “Ele não aumentou nada... Era assim mesmo.” Nunca mais se viram, porém o escritor lhe enviou diversas cartas. O vaqueiro, em 1979, doou ao Museu Guimarães Rosa o berrante que usara na viagem de 1952. Dos seis filhos, só um vaqueiro e omais velho, que os acompanhou ainda menino, virou tratorista de uma empresa de reflorestamento.

2--ELE SEMIBIOGRAFADO - Contos, suas primeiras publicações de 1929 a 1930 na revista “O Cruzeiro”, onde ganhou quatro prêmios; em 1936, prêmio de poesia da ABL com a coletânea de versos “Magma” (livro inédito ainda em 2016?) e segundo lugar pelos contos de”Sagarana”, prêmio concedido pela editora José Olympio. A partir de 1946, publicou “Sagarana”. Em 1956, ele ergueu dois monumentos literários na cultura brasileira: “Grande sertão: veredas” e “Corpo de baile” - hoje, toda a sua obra está traduzida mundo afora. Num total de 9 obras, póstumos os livros “Estas estórias” e “Ave, palavras”, número mítico que tanto o agradava, nascido em 1908. Antes de ser o escritor criativo, estudou medicina em BH (formou-se em 1930), clinicou por dois anos em Itaúnas, interior mineiro; em 1932, foi médico voluntário no movimento constitucionalista; entrou para o Itamaraty em 1934; foi cônsul na Alemanha durante a II GM; aprendeu espanhol, francês, inglês, alemão e italiano; tornou-se capaz de ler em latim, grego clássico e moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio. Expandiu-se para o mundo, porém voltando e dando dimensão metafísica ao sertão brasileiro. Ele sempre disse que para escrever e publicar precisava antes “viver e conhecer o Brasil”. O Rosa dos primeiros contos esparsos - em “Sagarana”, parecendo título infantil, “O burrinho pedrês”, narrativa comportada - se transformou, fluidicamente como um rio, num escritor de construções arrebatadoras. Escreveu este livro em 7 meses, retocou em 4. Ninguém que se referisse à sua genialidade, pois respondia com “Trabalho, trabalho, trabalho!” Trabalhava à noite, nos feriados e fins de semana, fazendo fichários e anotações ou viajando com vaqueiros e registrando tudo num caderninho. Mas era um autor mítico, aberto à magia do improviso e da epifania, daí que a novela “Buriti” (do livro “Tutameia”, que o autor intitulara como “Terceiras estórias” - as segundas nunca existiram...) apareceu-lhe em duas noites, sonhos repetidos, em 1948; “Conversa de bois” foi ao amanhecer de sábado; “A terceira margem do rio” foi inspiração na rua... Quanto a “Grande sertão: veredas”, por certo houve a proteção de forças ou correntes muito estranhas - “Corpo de baile” e “Grande sertão” emergiram na paisagem natural. Língua estranha? Não assim ‘um autor difícil’... (Ou ‘muito difícil’, com lapidação de palavras, neologismos, união de elementos populares e eruditos e esculpidas construções de frases?) Mistura de ‘inventou’ e ‘transcreveu’ diretamente dos vaqueiros que tangiam bois e da estórias contadas pelo interior. Absolutamente, não se fala assim em Minas Gerais: ele se apropriou de todas as línguas que sabia e as misturou com o que ouvia no sertão, criando um novo modo de narrar o mundo. “Simples” (ironia minha), não?! O primeiro espetáculo que fascina o leitor é essa linguagem, personagem ela mesma - em Rosa, como que música nova, melodioso modo de interpretar poeticamente o mundo. Estórias fascinantes ... Em 1963, eleito por unanimidade para a ABL, adiou a posse por quatro anos (profecia de que morreria após uma solenidade), assumiu a vaga em novembro de 1967, morrendo de infarte um mês depois. // Seus textos são muito aproveitados em teatro, cinema e televisão. // Teatro Anchieta, São Paulo, 1986 - O diretor Antunes Filho, da “prosa áspera de JGR” (palavras dele), adaptou “A hora e vez de Augusto Matraga” (conto que encerra “Sagarana”), aventuras e desventuras de Nhô Augusto Esteves das Pindaíbas, o Matraga, passou dois anos inteiros sobre a obra Roseana junto com um grupo de atores (o caudaloso “Grande Sertão...” daria uma peça de 9 horas...). No texto original, Augusto é um fazendeiro rico e poderoso que repentinamente perde tudo, é surrado até quase a morte, sobrevive sob a piedade de um casal negro, soturnos e nebulosos Pai Sarapião e Mãe Quitérea, se penitencia para ir para o céu “nem que seja a porrete” e encontra seu destino, sua hora e vez ao defrontar com o jagunço Joãozinho Bem-Bem. Em JGR, o enredo enxuto é enriquecido por uma linguagem sincopada, repleta de imagens poéticas, jóias estilísticas. E no palco? Modificação na estrutura - às quatro palavras do autor, “procissão entrou, reza acabou”, surge uma portentosa procissão, com andor, santa, dezenas de velas, ex-votos e figuras maltrapilhas. Plástica beleza, mas tênue ligação com o enredo, seja do conto ou da peça. E para garantir 2 horas de espetáculo, citações de “Grande sertão...” que pareceram um pot-pourri de máximas, provérbios ou frases grandiloqüentes.

3--MUSEU - O que diferencia Cordisburgo (do latim, ‘cordis’, coração + ‘burgo’, cidade), na região do Polígono das Secas, e de outras cidades pequenas e agradáveis do Norte de Minas Gerais é que nesta nasceu em 1908 (mais tarde o incrível escritor ) JOÃO GUIMARÃES ROSA. Foi médico, diplomata e... escritor. A cidade se situa na bacia do rio das Velhas e vive na atualidade entre o comércio de laticínios, a exploração turística da Gruta de Maquiné, a poucos quilômetros dali, uma das mais belas do mundo... e o Museu Guimarães Rosa., instalado na casa reformada onde ele nasceu - casa típica de três janelas, três portas na fachada e uma varanda lateral; na sala de estar, fotos da família, mapa da cidade no início do século XX e um tabuleiro de xadrez. Após o corredor, uma réplica do escritório dele no Rio, máquina de escrever Remington sobre a mesa e pequena escultura de um gaúcho; na parede, um quadro simula uma estante abarrotada de livros; no quarto, a muito querida cadeira de balanço. Uma foto tirada em Londres e outra no dia da posse na ABL, um paletó e a gravata borboleta que sempre usava - numa redoma de vidro, a espada de imortal. Também protegida por um vidro, um bronze de Gutemberg medindo meio metro, prêmio arrebatado no Concurso Paula Brito com “Grande sertão: veredas”. Há uma carta endereçada ao pai onde pede informações detalhadas sobre o sertão e uma primeira edição de “Sagarana”, 1946. Outro quarto é exclusivo ao ensaio fotográfico feito sobre sua obra em 1969. Em frente à casa (não descobri atividade ainda em 2015), a velha estação da Rede Ferroviária Federal, onde passa(-va?) o trem do sertão que serviu de cenário para certos contos - perto, um banco de pedra: “Aos familiares do escritor GUIMARÃES ROSA, homenagem da Administração Municipal”. Também ainda estão lá a Igreja do Rosário (missa no conto “O recado do morro”, do livro “No Urubuquaquá, no Pinhém”) e a fazenda de Bento Velho (que aparece no mesmo conto). Em outra rua principal, a Escola do Mestre Caninho onde ele se alfabetizou. Para o turista atual o prazer da manteiga e do queijo fresco: minas, prato, ricota e mussarela - nos restaurantes, a tradicional comida mineira: feijão tropeiro, lombo e frango ao molho pardo......... por sobremesa doce de leite.

FONTES:

“Último vaqueiro” e “Reflexos do assombro” - SP, Revista VEJA, 27/2/85 e 14/5/86 // “Na pequena Cordisburgo, o mundo de Guimarães Rosa” - Rio, jornal O Globo, 20/12/90 // “Guimarães Rosa, escritor em construção”, de Affonso Romano de Sant’Anna - Rio, jornal O GLOBO, 25/9/94 // “A atualidade de Guimarães Rosa”, de Isabel Cristina Mauad - Rio, revista CADERNOS DO TERCEIRO MUNDO, ano XX, n.180, dez./94.

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