Futuro Amor, Quer Café?
Ela chegou em casa pontualmente às dezenove horas. Retirou a pequena chave dourada do bolso e encaixou na fechadura, girou a chave algumas vezes até ouvir o "track" que significava que a porta estava aberta. Empurrou a grossa porta de madeira e acendeu o interruptor. Vivia num pequeno apartamento de três cômodos: sala/cozinha, quarto e banheiro. Por sorte o cubículo continha uma varandinha de vista pra cidade. Ela caminhou até a varanda e respirou fundo. O ar não era muito limpo, mas não tinha escolha. Ficou ali naquela posição encostada no parapeito, com os olhos fechados. Ouviu um barulho e abriu os olhos arregalados. Era só o Vênus, seu gato. Pegou-o nos braços e o levou para cozinha. Encheu o pote de leite e lhe fez carinho. Ficou ali observando o Vênus esvaziar a tigela, faminto. Não demorou muito e o gato rebolou a poupança até o sofázinho para cochilar. Ela caminhou até o quarto e arrancou a blusa. Vestiu dois casacos e um short de dormir. Nem se deu ao trabalho de arrancar as meias. Calçou as pantufas e se dirigiu ao banheiro. Lavou o rosto e retirou um pouco da mistura de rímel e delineador com a toalha, deixando-a inutilizável. Jogou-a no sexto de roupa suja já cheio. Soltou os curtos cabelos emaranhados e tentou penteá-los. Logo desistiu e os embolou novamente em um coque. Foi até a cozinha e retirou uma fatia de pizza meio dura da geladeira, mal se dando ao trabalho de esquentar. Tomou um gole de whisky e foi pra varanda. Sentou-se no peitoril e ficou a observar as pessoas, os carros, os animais que perambulavam em busca de comida. Sua varanda não possuía cobertura, o que era favorável, pois esbanjava o brilho da lua quase todas as noites. E finalmente seu alarme na sala tocou. Sorriu. Eram exatamente oito da noite e ele estava chegando do trabalho. Dali do peitoril dava pra ver ele chegar na portaria, cumprimentar o porteiro e subir. Em cerca de vinte minutos ele estaria na cozinha com grandes portas de vidro, onde ela podia vê-lo retirar a blusa, jogar sobre a cadeira e preparar o café. E foi o que aconteceu, mas dessa vez ele trazia consigo uma grande caixa de presente. "Será o seu aniversário?" Se perguntou. Se era seu aniversário, provavelmente alguém chegaria. Logo ele saiu da cozinha e ela já não sabia em qual parte da casa ele estaria. Gostava de imaginar o que ele fazia longe das portas de vidro. Passou-se algum tempo e ele retornou a cozinha, pegou a xícara de café e ficou um longo tempo parado olhando o líquido na caneca. Balançou a cabeça e escondeu os olhos sob as mãos. "Será que está chorando? Ou cansado, talvez" pensou ela consigo mesma. Pela primeira vez em três meses ela ficou realmente incomodada com a distância entre seus apartamentos. Cerrou os olhos e tentou capturar algum detalhe que fosse realmente importante. Então ele se virou e caminhou em direção a varanda. O coração dela palpitava. Era a primeira vez que ele se dirigia até a varanda em três meses. Se sentiu desconcertada e tentou descer, mas suas pernas não respondiam a nenhum dos comandos. Ouviu o Vênus miar na cozinha e sabia que ele viria fazer companhia. O gato arredondado subiu no parapeito causando um leve tremor que ela já estava acostumada. Ele foi em sua direção ronronando. Os olhos dela brilhavam toda vez que via o Vênus, era a sua melhor companhia a três anos e eles eram inseparáveis. Passou cerca de dez minutos acariciando o gato, completamente distraída e já esquecida do que estava fazendo ali. "Perdi a noção do tempo" pensou. Olhou para frente e lá estava. Cabelos voluptuosos e desgrenhados caindo sobre o rosto. A barba mal feita e o bigode bem modelado. Os braços nús exibiam tatuagens que ela não sabia descrever e o rosto carregava uma expressão de curiosidade. Lá estava ele olhando diretamente para ela. Suas pernas gelaram. Daquela distância era possível perceber o contato visual. Ele sorriu e acenou. Ela permaneceu imóvel, não sabia se acenava de volta ou se jogava dali mesmo. Ele abaixou a cabeça por um tempo parecendo decepcionado, mas só estava juntando forças para gritar "ooiiii". Saindo do transe em que havia se metido ela conseguiu gritar de volta "ooiii". Ele sorriu. "Posso ver o seu gato?" Ele gritou. Mal dava para se ouvir as palavras devido ao movimento ensurdecedor da cidade. Ela sorriu e deu de ombros. "Eu sei que parece idiota" e se segiu uma sequência de palavras que se misturavam a buzina de um carro na rua abaixo. Ela caiu na gargalhada. Ele também. Ela pegou, com dificuldade, o Vênus nos braços e o estendeu. "Quer que eu jogue?" Ele se dobrou sobre o parapeito de tanto rir, apertando a barriga com as mãos. Era lindo. Ela o observou por um tempo até sua expressão se transformar em um flerte. Ele sorriu. "Quer café?"