O vizinho
Não sei por que cargas d’água ele veio a mim. Não temos amizade, somos apenas vizinhos, mal nos conhecemos. Pensei, pela maneira desesperada como ele surgiu, “é caso de vida ou de morte”. Atravessou a rua sem o menor cuidado, como se estivesse num passeio público, só que sem público, pois não via nada nem ninguém, além de mim.
Como estava, fiquei. Ofereci uma cadeira, ele nem notou. Permaneceu em pé, tremendo que nem vara verde. Providenciei um copo com água e açúcar e aos poucos começou a se acalmar e balbuciou algumas palavras que eu mal pude entender.
Enfim, acabou sentando, respirou fundo e disse:
- Preciso lhe confidenciar um segredo.
Ao que lhe respondi, com espanto:
- A mim? Por quê? Mal nos conhecemos. Não me leve a mal, é que segredos normalmente são contados a amigos íntimos e ao que me parece não o conheço o suficiente para ter esse privilégio.
- Também não a conhecia disse ele.
Aí deu um nó na minha cabeça. Meus neurônios tentaram se alinhar, mas foi impossível. Não que eu seja curioso – longe disso, porém, já que começou aquela ladainha teria que terminar.
- Pois fale então, disse a ele. Se você acha que vai lhe fazer bem, fique à vontade. Conte-me, quem é ELA e o que ela tem a ver com essa situação incômoda que te encontras.
Um pouco mais recuperado, respirou fundo umas duas ou três vezes e começou.
- Hoje, como de costume, acordei e fui para a janela.
- Você gosta de ver o movimento de pessoas na rua?
- Não! Gosto de ver o movimento dela.
Ficou esperando minha reação. Eu, quieto, esperando a reação dele.
- Ela mora no 801.
Para mim não fez diferença alguma. Não conhecia ninguém, ou quase ninguém daquele prédio.
Continuando, disse ele:
- Ela é muito bonita e hoje eu não resisti. Saí à rua para vê-la bem de perto. Quando passou por mim dei aquela cantada que estava guardada há muito tempo.
- E qual foi a reação dela, perguntei:
- Uma única frase: “Vou contar para o meu marido!”
Putz! Então fedeu mesmo, pensei. E você não sabia que ela era casada?
- Não
- E agora, pelo menos sabe quem é o marido dela?
- Sim, agora eu sei. O cara é traficante, chefe de quadrilha e faixa preta em toda modalidade de luta.
- Sinto muito por ti. Foi bom ter te conhecido.
- Há algo que eu possa fazer? Mesmo sabendo que não deveria, perguntei-lhe
- Sim - respondeu ele.
- Vá até o meu apartamento, espalhe cartelas vazias de Rivotril pelos cômodos e após chame a ambulância. Diga tratar-se de uma pessoa com insanidade mental e, portanto, que tragam camisa de força.
- Ah, mais uma coisa: Se algum vizinho quiser colaborar na minha apreensão, por favor, não permita em hipótese alguma.