CRÔNICAS DO TREM: CHATEAÇÕES

Uma boa ideia sem iniciativa, é apenas isso. Uma boa ideia. Hoje ao vir pegar o trem como faço todos os dias, por algum motivo, errei o caminho. Tive que fazer um desvio com o carro e passei por uma rua lateral à estação que nunca passo. Ali, singelamente, uma pessoa havia armado uma pequena mesa desmontável. Em cima dela colocou três garrafas térmicas e algumas bandejas. Tenho quase certeza que vendia café, pingado e chocolate. E para comer, bolo de fubá e pão de queijo duro.

Há quatro anos atrás percebi que ali tinha muito movimento, tanto de um lado quanto de outro da estação, e falei para um amigo que seria um negócio lucrativo fazer justamente isso. Ele se interessou pelo que ouviu e abriu sociedade com um outro cara. Um ano já se passou desde que do lado oposto um bar passou a abrir cedo para vender salgados, além das tradicionais bebidas do "breakfast" brasileiro. Vai muito bem, obrigado. Para aumentar minha tristeza, fui estacionar na frente da porta de um bar. Minha esposa me advertiu para não fazê-lo, pois o dono do estabelecimento agora era o feliz proprietário também de um veículo. Dois anos atrás aconselhei um outro amigo a se especializar no ramo da dependência química. É um cálculo muito triste, mas lhe disse que com a crise que se avizinhava uma das poucas coisas que dariam lucro eram clínicas de recuperação e bares. Não deu outra. Ele me escutou, eu não. Quero me encher de porrada cada vez que ele me agradece. Me sinto atingido por algum tipo de maldição de Cassandra ao contrário. Sou capaz de prever o futuro e alguém sempre me escuta, menos eu. Ces't la vie...

Talvez seja um defeito, mas sou da opinião de que tristeza não paga dívida. Embora alegria costume ajudar a fazê-las. Como bom voyeur das vidas alheias, para amenizar minha angústia, vim me divertindo com os conselhos de um senhor para um casal de jovens namorados:

-Ah, hoje está tudo mudado. Hoje tem essas coisas de celular, facibuk, whatizapi. Cê atrasa cinco minuto a muié já tá ti ligando para sabê ondi cê tá, qui cê tá fazendo. Qué falá com ocê o tempo todo. Os homê a mesma coisa. Na minha época eu falava pelos oreião. Tinhá qui chamá. Si demorasse mais di cinco minuto, fazia fila, o povo reclamava. Cê quiria falar argo mais demorado, só por carta ou pessoalmente. Eu viajava prá trabaiá, as veiz ficava mais de duas semana sem falar cum ela. Ela fazia as coisinha dela, eu fazia as minha, nóis cunversava. Até hoje nóis cunversa. Se vocês se fala o tempo intero, que assunto o cês tem prá falar quando tá junto? E a modis de que, também nóis de longe num muda nada. Nem de perto as veiz nóiz muda. Num se preocupa não que notícia ruim vem a galope.

Desisti de ficar de butuca e me enfiei em um livro, envergonhado. Um grande amigo (e grande) escritor e um dos maiores especialistas em Aristoteles da Silva, havia me mandado um conto há muito tempo. Sinceramente, quando eu vi o tamanho do troço, desisti na hora. Fui deixando, fui deixando, até esquecer completamente. Só que o cara é tremendamente gente boa. Lê e opina sobre tudo o que mando para ele (e sobre o que não mando também). Há alguns dias atrás me lembrou gentilmente sobre este conto. Li e fiquei empolgado e fui pontuando com minhas impressões. Estas devem ter ficado maiores que o texto dele. A cada momento olhava a caixa de mensagens e nada. A cabeça já imaginava: O cara tá magoado comigo. Aconteceu alguma coisa com o velhinho. Ele achou que eu escrevi tudo aquilo por que eu achei que ele estava me cobrando. E por aí ia. Antes de sair de casa tinha aberto o Face. Ele adorou meus comentários. Só pegou uns dias para ficar off-line em um sítio da família. Tem dias que a viagem é longa...

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 03/08/2016
Reeditado em 04/08/2016
Código do texto: T5717727
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