Curitiba de maquiagem borrada
Há uma sensação besta de não estar no Brasil quando se caminha pelas ruas do centro de Curitiba num dia típico de inverno. Besta mesmo, porque, na maioria das vezes, essa sensação é confessada por gente que nunca esteve fora do Brasil. Por isso, confesso desde já, o tal besta da vez sou eu. Digo uma sensação porque é como se estivesse vendo cenas e paisagens daquelas mostradas em filmes feitos na Europa, EUA ou mesmo em Buenos Aires. Algumas ruas ganham por alguns instantes um leve tom de não ser brasileiro. Nossa! Que ridículo! Como se tivesse um só jeito de existir o Brasil, ou como se o Brasil fosse um só, ou mesmo como se só houvesse um ponto de vista válido para ganhar o direito de dizer o que possa ser brasileiro. Não, não creio em homogeneidades e opiniões taxativas, ainda mais sobre lugares, culturas e pessoas.
Enfim, mas voltando ao assunto central, queria apenas relatar o quanto até esta sensação indicada acima pode ser um risco e um tremendo engodo. Uma imagem muito ligeira e muito aquém do que efetivamente parece ser, embora o ser e o parecer se misturem bastante. Isso porque na mesma paisagem de céu cinza, dia frio, pessoas usando sobretudos, cachecóis, gorros e luvas, além das árvores secas exibindo a sua nudez sazonal, há, também, na parte mais lateral das belas fotos, a desigualdade na sua forma mais crua e escancarada. As rachaduras deste cisne empalhado exibem o atestado de país subdesenvolvido, o mesmo que tenta esconder as rugas e os pés de galinha por trás de uma maquiagem barata e vencida.
É só passar pela Praça General Osório, fim (ou início, a depender de onde se vem) do calçadão da rua XV, considerado um dos pontos turísticos da cidade, lugar repleto de lojas, cafés, bancos, além de espaços concedidos aos artistas locais para suas apresentações, que se verá o quanto a propaganda busca encobrir a extensão e a profundidade de tal negócio constituído quase sempre às cegas. A própria praça, que homenageia um antigo militar e monarquista, inclusive com a presença imponente de seu busto no local (coisa típica por aqui), pode servir como exemplo da decadência e falta de respeito aos valores da irmandade nacional que os curitibanos, quase sempre oriundos da elite, tanto defendem. Quando perguntados o que pensam sobre os seres humanos que pedem dinheiro ou comida na rua, ou daqueles que dormem por ali mesmo ao relento nos bancos gélidos da tal praça, muitos afirmam com naturalidade que em sua maioria se tratam de “vagabundos”, gente que deveria seguir seu rumo e procurar outro lugar para mendigar. Aliás, expulsar as células aparentemente estranhas do corpo curitibano parece ser uma tônica de parte da intelligentsia local, pois constantemente pode se ver, no mesmo calçadão da XV, uma barraquinha muito bem organizada com cartazes solicitando a adesão dos que comungam da sua ideia de solicitar, via abaixo-assinado, o desmembramento oficial da “República Curitiba” do resto do Brasil.
Tais amostras só reafirmam o quanto a imagem bonita, convidativa e aprazível, esconde fissuras imensas de um egocentrismo tresloucado de quem acha que o lugar onde mora é mesmo o umbigo do mundo. Claro que a cidade é bonita e em alguns pontos muito eficiente. Claro, também, que muitas pessoas daqui são conscientes e humildes, até mesmo muitos que são oriundos das classes mais abastadas e sabem que a meritocracia não é privilégio de todos, por mais bonita que possa ser na teoria. Entretanto, e sempre é importante ter um entretanto, longe de buscar empreender um ensaio ou mesmo uma ficção sobre o caso que envolve o latente desencontro entre a propaganda que se faz da capital paranaense, como exemplo de modernidade e de eficiência, e a cuidadosa observação de um ser estrangeiro, já vacinado contra as sensações eufóricas do turista empolgado com os parques e demais centros culturais, coisa aliás que pode ser encontrada na própria literatura local, esboça-se apenas uma miúda reflexão de um transeunte incomodado com tal discrepância, a qual creio nem sequer chegar ao extremo, quando confrontada com as imagens que se originam nos arrabaldes da cidade.
Como disse acima, são só imagens de um corpo vivo e em constante movimento, que, longe de exibirem uma plástica perfeita para o resto da vida, acabam exibindo, a partir de um olhar mais atento, também as suas fissuras, feridas e marcas de expressão. Nesse caso aqui, não é preciso ter uma lupa.