O MACHADO E A FOICE
Machado é meu amigo há quase cinquenta anos, desde os bancos da faculdade. Nesse período, Machado não cometeu nenhum crime. Não matou, não roubou, não corrompeu e nem foi corrompido. Mas essa “ficha limpa” acabou ontem quando ele, inadvertidamente, postou no nosso grupo (que poderia chamar-se Vovôsapp) uma conversa meio enviesada e um vídeo de conteúdo adulto. Segundos depois, constatado o equívoco, Machado humildemente desculpou-se.
Mas já era tarde. Bala disparada não retorna ao tambor. Muitos colegas entenderam e relevaram o engano, mas sempre há os Torquemadas de plantão que não hesitam em descer a foice no pescoço do réprobo, em nome próprio e numa suposta proteção às “donzelas” ofendidas por tão inominável pecado, como se, com um “saber só de experiências feito”, elas mesmas não soubessem defender-se.
Ora bolas! Erros acontecem. Atire a primeira pedra quem nunca os cometeu. E, no caso, foi um simples erro “operacional”, de consequências desagradáveis e constrangedoras, não nego. Uma derrapada compreensível para quem, como todos os membros do grupo, tem um pé no século XX e outro no XXI. Pagamos o preço pelo ingresso no mundo digital ainda com as mãos sujas de papel-carbono.
Além disso, mais do que em outros grupos, temos a obrigação de relembrar as aulas de Direito: não houve, no caso, o “elemento subjetivo” do tipo. O envio do material não foi doloso. Foi um acidente. Tanto, que não se repetiu. Por outro lado, este é exatamente o momento de pormos em prática as mensagens de tolerância que recebemos às carradas todos os dias neste mesmo grupo. Por que FAZER é, muitas vezes, mais difícil do que PREGAR?
Por último, há um recurso óbvio e instantâneo para aqueles que se sentem incomodados com o material recebido. Deletá-lo. Quem não quer ver estrelas não olha pro céu. Viu que é porcaria, destrua-a imediatamente, se possível antes mesmo de abri-la. Todos os dias recebo e-mails duvidosos. Só hoje recebi três: “a sua cama vai pegar fogo”, “dando uma trepada de leve” e “mantenha o bicho duro.” Já estão todos na lixeira, inclusive o bicho (antes que ele ficasse duro).
Por isso, meu caro Machado, bola pra frente! Vamos voltar à leitura de Eça de Queiroz: “sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.” Eu tenho a literatura, sobretudo a poesia, como uma espécie de oração paras esses momentos de provação. Até porque, conforme escreveu Mário Quintana, “eles passarão, eu passarinho.”
Veja as ruas. Estão mais floridas. São os ipês. Roxos, amarelos e brancos. Cada um escolhe sua cor. E assim, quem sabe, um dia a foice pode transformar-se num desses ipês, em vez de derrubá-los.