Inexistência Parcial

Todas as vezes me deparo com a tal exclamação: "Bom dia!".

Não por arrogância nem descortesia, mas não respondo, não estou pronto para isso.

Minha vida foi interrompida duas horas atrás, quando soou o despertador. Levantei roboticamente.

A motivação humana não é simples, seria também invisível? Saio da cama por um vago esforço de consciência e apanho todas as bugigangas necessárias. Mas, necessárias para que?

Entro em um carro que não parece ser meu, nunca senti que era meu. Me parece estranho ser dono de algo que não se pode pegar na mão.

O trajeto tortuoso se tornou uma linha reta: um buraco no tempo, simplesmente não vi nada. Estou no estacionamento.

Faço o nó da gravata e me sento numa mesa que não é minha. Não gosto da cor, não gosto da forma nem da altura. Tento aceita-la pelo mínimo de comodidade.

Gostaria de escrever, talvez devesse adotar um nome artístico, qual seria? Como eu seria?

Uma segunda campainha interrompeu minha vida pela segunda vez. É a senha de alguém que vem até a mesa. É o mesmo "Bom dia" azedo, desta vez, sou obrigado a respondê-lo.

Inicio uma sequência de passos automáticos, minha alma desapareceu. Sou um cara de gravata que executa uma tarefa terrivelmente impessoal. Eu desapareci, o cara na minha frente também desapareceu. Só as carcaças podem ser vistas.

Como se pode odiar alguém que não se conhece? É mais simples do que parece, basta que o sujeito lhe force anular a própria subjetividade com o soar de uma campainha.

Faço isso uma, duas, cem vezes. Faço por um, dois, cem dias. O pão que o Diabo amassou já me dá água na boca!

Quanto tempo alguém sobrevive fingindo ser o que não é? Digo, quanto tempo aguenta sem se diluir, sem ser engolido e perder até o ultimo vestígio da própria identidade?

A campainha soou pela última vez. Estou livre? Acho que ainda sei quem sou, embora soe um tanto fictício. Minhas ambições e sonhos se tornaram uma nota em papel de rascunho, preciso ler para saber quais são e que ainda existem.

Nascer é uma benção, renascer é somente exaustivo.

Já são seis da tarde. Tenho mais algumas horas para descobrir se ainda sinto alguma coisa, se ainda sou capaz de sentir... Só algumas horas, até que outra campainha destrua tudo de novo.

Luc Silva
Enviado por Luc Silva em 02/08/2016
Reeditado em 02/08/2016
Código do texto: T5716474
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