Único amor

Tinha só 2 anos de idade mas já era tagarela. Tinha vontade própria e sabia desobedecer as ordens dos pais. Ainda por cima se irritava quando era obrigado a fazer o que não queria e seguir as regras. Certa vez fazia sol, no fundo do quintal havia uma bacia que servia como bebedouro para o pato. Adorava água, foi então as escondidas com um copo medidor, sentou-se ao lado da bacia e refrescou-se ao sol. Molhou o pescoço, os cabelos. Logo as roupas estavam encharcadas e a bacia secara com a água que espalhava-se e molhava o piso. O pai observava tudo escondido enquanto fotografava com aquelas velhas máquinas de filme. A avó e o avo aproximaram-se, o tio, a mãe. Todos riam do traquinas. "Molhou toda a roupa! troca a roupa dele mãe... pra não pegar resfriado." O moleque levantou-se e saiu aos poucos de perto da bacia. "O que vocês tão olhando? ". Como que não liga para o que vão pensar ou dizer à respeito dele. "Ta. Muito bonito seu Vinicius, agora pode ir ali buscar o teu copinho e por no lugar e depois encher de novo a bacia do patinho, senão ele vai ficar sem água pra beber! " A mãe tentava educar. O piá não queria ser educado. Queria desobedecer. "Não quero, vai tu!" Era respondão. Ja nessa idade se irritava com as ordens e com as atitudes da família. "Não precisa trocar de roupa vó... Tá calor." "Não quer trocar de roupa tudo bem, mas vai ir ali encher a bacia do pato de novo e trazer o copinho pra pia." O pai ria da atitude do moleque. A mãe era a única quem ensinava a ter educação. Foi ali, enfurecido, abriu a mangueira, respondendo às ordens da mãe e encheu dágua a bacia. Trouxe o copo de volta e pôs no lugar. "Mas onde já se viu, dessa idade querendo ter vontade própria". Os comentários o enfureciam cada vez mais. Disse que não gostava da mãe, por que ela o obrigava fazer coisas que não queria. O pai ria, perguntava se dele gostava. Dizia que "claro! Me deixa fazer o que eu quiser..." "E da vó tu gosta?" "Gosto de todo mundo menos da mãe." Claro, era a única que tinha a paciência de colocar o moleque nos eixos. Isso o enfurecia. Ninguém se atrevia a mandar nele ou obriga-lo a fazer algo, exceto a mãe. Aos poucos foi ficando insolente, fazia de tudo para irrita-la e contraria-la. Deixou de enxaguar os pratos para ela quando lavava louça. Pegava a mangueirinha só para ficar brincando. "Não vai me ajudar não me atrapalha, pode soltar a mangueira, descer da cadeira e sair de perto da pia." Ficou enfurecido, não chorou nem esperneou. Apenas saiu, calado. Jurou ódio mortal pela mãe. Que não gostava dela. "De todos, menos dela." Os dias passavam e aos poucos as coisas se desenrolavam. Aos 2 anos não há histórias para se contar nem uma vida para se viver. Apenas conviver e aprender. Já andava. Se achava gente. Não sabia bem o que era isso, mas sabia que era. Sentou no colou da mãe e logo depois desceu. Pediu colo de novo. Queria chamar a atenção. Não sabia como faze-lo. Sentou no colo de novo. "Ele já sabe andar?" Perguntou a amiga. "Não muito." "Sei sim, deixa eu descer." Desceu, deu alguns passos, parou, as pernas tremeram e balançaram como vara verde, tropicou. A mãe e as amigas riram. O moleque estabacou no chão. Abriu o berreiro. "Bem feito. Quer ficar te aparecendo. Vem no meu colo." Gritava e chorava, enfurecido. "Sai, não quero ir no teu colo!" O pai ouviu a gritaria e foi ver, perguntou o que foi... "Ele caiu." -Não! foi tu quem me deixou cair- replicou. A noite a mãe chorava no quarto, dizia que o filho não gostava dela. Na janta o moleque comia eloquente, diziam que "chega", mas ele dizia que não. O pai deixava. No berço sentia-se mal. Antes de pegar no sono pensou em dizer pra mãe que gostava dela. Queria se desculpar por te-la feito chorar. Pegou no sono. Pela manhã, despertou chorando, doente, febril. "Te arruma, vamos levar o guri no médico." "Tu vai levar ele no médico, por que é tu quem deixa ele fazer o que quiser, a culpa dele estar mal assim é tua!" "Tua também." "Eu te falei pra ele não comer desse jeito!" Se meteu na discussão e interveio: "Eu sou teu filho também, tu tem que ir junto!" "Viu, é teu filho também, vai te arrumar que eu vou ligar a Marajó". Esperavam o carro a alcool esquentar, o pai e o moleque febril, na garagem. A mãe se arrumava no quarto. "Cadê essa mulher?!" A cada segundo de demora o guri se irritava. Cada vez mais. "Quero que minha morra! Não gosto dela mesmo!" Pensava irado. Não sabia como a vida funcionava. Pensava assim. Pensava que era só raiva. Que ela morresse por que não gostava, era uma forma de culpa-la. De se vingar. Faze-la sofrer por trata-lo daquela maneira. Não aceitava que o submetesse à ordens. Que recusasse fazer suas vontades. Pensava assim e não sabia porque, apenas pensava e ponto. Tinha razão, pra si mesmo. E era só o que importava para ele. A mãe não desceu do quarto, não foi até a garagem e não entrou no carro mau-humorada com o marido, por mal criar o garoto daquela forma e deixa-lo desobediente, respondão, sem limites. O pai entrou no banheiro. O guri veio andando, mas foi até a porta do banheiro engatinhando. Esticou o pescoço pela porta e olhou pra dentro. A mãe nos braços do pai, de olhos fechados, enquanto a água do chuveiro molhava a testa e os cabelos, desacordada. Há poucas chances de sobreviver de um acidente vascular cerebral. Mas a mulher era forte. Sobreviveria mas não andaria outra vez. O médico disse para perguntarem ao único filho, se desligasse os aparelhos, ou deixasse ligados. Já que alguém há de empurrar a cadeira durante toda sua vida.

Cresceu e aprender a lição que a mãe queria ensinar. Era um rapaz educado e respeitoso. Não tem muitos amigos nem muitas histórias pra contar. Quiça um amor. Não era mais audacioso nem desobediente. Seguia as regras. Não tinha mais raiva nem fúria da mãe. Pelo contrário, era a única pessoa quem ele fazia todas as vontades, sem reclamar ou pestanejar, não receava. Saia as pressas, passando por cima de tudo e trombando nas coisas quando ela o chamava. Fumavam um cigarro olhando pela janela da cozinha, sentados à mesa. Foi até o quarto e deitou-se na cama. A mãe chamou da sala e pediu que a colocasse na cama. Deitou-a e veio à seus pés, como quem senta no colo por entre as pernas. A mãe o fazia cafuné.

PS: I`ll take care of you - Bobby blues band

Raul Nini
Enviado por Raul Nini em 01/08/2016
Reeditado em 01/08/2016
Código do texto: T5715244
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