Os arquivos de Deus
O campinho de terra não está mais lá. Hoje, no lugar, há uma pracinha, com bancos, árvores gigantes e espaço para as crianças andarem de bicicleta. Assim dizendo, não a localizo bem, mas se digo que é a Praça Romeu Bellini, em Juiz de Fora, no bairro São Sebastião, um eventual leitor que viveu nas minhas bandas – moro na região ainda hoje –, distante que esteja, haverá de se recordar do campinho em que nos divertíamos em peladas e pequenos certames bem disputados, “que os anos não trazem mais”. Em frente à praça, está lá o botequim do Nem, onde, muitos anos antes – nas mãos de outro dono – o prefeito Itamar Franco, à época já com o consagrado topete, entrou e ouviu do Amaro Damaso e de outros moradores os problemas que enfrentávamos.
Franzino, porém dedicado, aperfeiçoei-me nas embaixadas e no chute forte. Não tinha a habilidade do Sila, meu primo, jogador perfeito que, não fora lhe terem machucado o joelho, seria um Gérson, um Rivelino. Não tinha eu o drible, a inteligência do Ildemar, irmão do Ismael, ambos gênios, aos meus olhos... Não tinha eu o ímpeto do hoje ainda vizinho Oseas, que esbravejava, levava o jogo a sério e não gostava de perder. Tinha o chute forte e certeiro (achava eu!), até o dia em que o Ernani foi lá jogar contra nós. Chutei várias vezes, de perto, de longe, mas ele foi aos ares ou rastejou na terra e impediu minha façanha. Anos depois, eu o vi – na antiga TV Rio, creio – defendendo o gol do Bangu, no Rio de Janeiro. Recentemente, fui ao Mílton Neves, no site que nos diz que fim levaram as personalidades do esporte, mas não encontrei o Ernani.
Falava eu de minhas poucas proezas, mas não enfatizei que costumava ter técnico. Miguel era baixo, forte, a barriga um tanto protuberante; morava – como eu – pertinho do campo e tinha o cuidado de não me deixar enfrentar os grandões, diagnosticando com amizade os entreveros em que eu e outros mais frágeis poderíamos atuar. Uma alma boa esse Miguel! Um belo dia, disputava eu lá com os de minha categoria; normalmente jogávamos descalços para economizar os tênis ou porque não os tínhamos. Os pés ficavam fortes e impactavam bem a bola. Desprotegido, feri-me em um caco de vidro e o mundo veio abaixo, pois eu tive receio de chegar sangrando em casa; afinal minha mãe não concordava muito com aquelas insistentes saídas lúdicas. Miguel levou-me rapidamente para sua casa, limpou o ferimento, usou mertiolate e fez um curativo, protegendo-me, creio eu, com gaze ou algo parecido. Minha mãe não se zangou, e eu curei-me rápido, e dias depois estava de novo em campo, repetindo chutes e alguns lançamentos, sob o olhar do Miguel, que, quando tinha tempo, aparecia e nos orientava.
Nunca mais vi aquele homem, vizinho, amigo, que tinha amor às crianças. Não sei se tivera filhos, mas, se não os teve, dedicou aos filhos dos outros o carinho que dedicaria aos seus. Não há sequer esperança de encontrá-lo no site do Milton Neves, pois ele foi apenas uma anônima celebridade do bem. Estará vivo? Será pó na eternidade? As religiões nos confortam... Para algumas, todos nos encontraremos um dia. Algo fantástico! Para outras, vamos nos reencarnando sucessivamente e, também assim, creio eu, torna-se possível o encontro de espíritos que se conheceram quando encarnados. Veja, Mílton Neves, que Deus pensa antes de nós as boas ideias que um dia teremos e, se mesmo nos registros divinos, Mílton, como nos seus, não acharmos os amigos que procurarmos, creio que a equipe de Deus escavará arquivos...