A vida pode ser boa... às vezes

Saí com Sara ontem de noite. Fomos até um barzinho perto do serviço dela onde só se servia camarão. Você pagava vinte e seis paus e comia camarão à vontade. Tinham de todos os tipos: frito, assado, cozido, cru, fresco, passado, preto, branco, amarelo, vermelho, pink, à baiana, à grega, à milanesa, a passarinho... A cerveja era R$ 6,90 e a taxa de mesa 6%. O ambiente até que era razoável: mesas de madeira, samambaias, quadros retratando a vida no litoral. Podia ser melhor iluminado, acho. O atendimento, aquela coisa VIP, por sinal: o garçom que nos serviu tinha cara de rato e fedia a uísque barato (provavelmente não era o emprego dos seus sonhos e a namorada o trocara pelo entregador de água). O banheiro não era dos mais limpos também. Nada de música (graças a deus).

— Gostou do lugar?

— Claro, Sara. Vamos pedir outra?

— Já vai começar a se embebedar?

— Essa é só a terceira garrafa. Virou crente?

— Lembra da outra vez que a gente saiu?

— A outra vez foi a outra vez. E eu bem te avisei que eu não estava a fim de sair com os seus amigos idiotas.

— Idiotas?

— Extremamente. Não tem como levar a sério um cara que é imbecil o suficiente para acreditar que tem uma entidade maior o ajudando, “abrindo os meus caminhos”, como ele diria. Parar o carro para jogar moedinha de cinco centavos em cada encruzilhada que passa? Fala sério.

— É, bons devem ser os seus amigos.

— Eu não tenho amigos.

— Porque ninguém quer ser seu amigo.

— Isso, sim, seria uma benção. Acontece que não é bem assim que a coisa se dá.

— Não?

— Tem esse lixo todo que eu escrevo e posto na internet. As pessoas leem e querem me conhecer.

— Ah, tá bom.

— Tô te falando.

— Você nunca ganhou nem vinte centavos escrevendo.

— Sim, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Não sei de onde você tirou essa ideia. Vinte centavos...

— Ganhar dinheiro não tem nada a ver?

— Os meus textos estão no meu site, gratuitamente. As pessoas leem. É um serviço filantrópico; a intenção é elevar a alma das pessoas com essas coisas edificantes que escrevo.

— Você precisa arrumar um emprego melhor.

— Eu TENHO um emprego de balconista de loja. Esqueceu?

— É exatamente desse que eu estou falando.

— Bom, desculpe, Sara, se Deus não me deu um cérebro de minhoca como o seu e muita habilidade para trabalhar com as mãos e cativar as pessoas. Ou melhor dizendo: aguentar as pessoas.

— Vai começar com as ofensas?... Só estou dizendo que ao invés de você ficar escrevendo aquele monte de coisa esquisita que só quem tem problema mental gosta você bem que poderia fazer um curso técnico.

— Aham, já sei: operador de empilhadeira.

— Eles ganham mais do que você.

— Tirador de chapa de hospital.

— Esses ganham MUITO mais do que você.

— E você acha que eu não sei?

— Parece que não.

— Escute, Sara, eu desistiria para sempre de escrever se em troca qualquer um me desse um emprego estável de operador de empilhadeira ou tirador de chapa hospitalar. O que acontece é que por mim mesmo eu não consigo lutar por esse tipo de coisa. Não estou dizendo que eu sou melhor do que alguém nem nada, entendeu? Muito pelo contrário.

— Esse é o seu problema. Mas você está muito enganado se pensa que eu vou continuar para sempre ao lado de um cara que fica brincando de ser escritor bêbado. “O Maldito Escritor”? Fala sério.

— Obrigado por essa.

— Disponha.

— Que tal agora eu virar essa mesa aqui, estourar uma garrafa e meter na cara daquele fodido daquele garçom folgado?

— Você parece criança.

— É delas o Reino do Céu.

— Continue blasfemando.

Tirando uma coisa ou outra, até que foi uma noite bem agradável. Sara estava com um vestidinho preto bastante decotado na frente e bem grudado na bunda. Os caras das outras mesas lançavam olhares pros peitos dela ou tentavam (conseguiam?) ver a sua calcinha por debaixo da nossa mesa. Conversamos sobre amenidades e não-amenidades; demos risadas, brigamos um pouco, fizemos as pazes. Me empanturrei de camarão e cerveja até não poder mais. O da cara de rato parecia bem de saco cheio de ter quer ficar passando por lá toda hora.

“Senhor, aceita bunda... er, quer dizer, calda de camarão à havaiana cozido no caralh... desculpe, no alho, senhor?”

“Não, senhor, o senhor não pode levar uma quentinha para viagem sem pagar os R$ 26,90 de uma refeição completa.”

“Ô seu filho da puta, e se eu simplesmente encher o meu prato de camarão e depois pedir pra sua mãe pelada de pernas abertas embrulhar com os pés? Assim pode? Vão fazer o que com as sobras? Servir novamente para as pessoas? Isso aí é crime, hein, Joe...”, foi o que eu não disse.

Fomos embora meia hora antes do horário da novela começar. A conta deu R$ 98,00. Sara pagou. Naquela semana era a vez dela pagar. Ia dizer a ela para deixar os R$ 2,00 de trocado para o garçom, mas pensei um pouco e resolvi deixar para a próxima vida. Acendemos os nossos cigarros e caímos fora dali. Fazia uma noite adorável apesar de estar chovendo um pouco: nem muito fria, nem muito quente. Cheiro de asfalto molhado subindo. No caminho percebi que ela estava meio bêbada; falava e ria muito alto. Ficava me provocando o tempo todo, falando mal das vagabundas (nas palavras dela) que eu conhecia, das vagabundas que ela achava que eu conhecia, das vagabundas que eu viria a conhecer. Eu também estava meio ou bastante bêbado, tanto que apenas sorria e mandava ela calar a boca — coisa que ela não fazia, como sempre.

— E aquelazinha da firma de empréstimos que não sai do seu pé? É só eu virar que ela tá ali esfregando aquela periquita velha na sua cara.

— Sara, ela é casada.

— E daí? Acha que eu nasci ontem?

— Ela deve ser meio metro maior que eu — exagerei.

— Ah, meu filho. Até parece que você não sabe que mulher quando quer dar ninguém segura. Vai qualquer um que estiver na frente.

— Realmente não sei o que você quis dizer com isso, mas acho que está na hora de você calar a boquinha, que já está falando muita asneira para o meu gosto.

— Eu calo se eu quiser! A boca é minha.

— Voltamos para o jardim de infância.

— Isso mesmo.

— Queria saber o que as tuas clientes iam achar se te vissem desse jeito, toda cheia de classe.

— Quem paga as minhas contas não são elas. E nem você.

— Valeu, Sara.

— Às ordens.

— Porque é que você não arruma um tiozão rico de rola murcha pra bancar esse teu rabo cheio de marra? Você só precisaria se agachar e engolir o xixi dele de vez em quando.

— Seu eu quisesse um, era só estalar o dedo.

— Legal, vá em frente. Nunca te impedi. Vadia correndo atrás de mim também não falta.

— Ah é?

Nisso Sara parou e tomou o caminho oposto. Saiu andando rápido e eu, bobo que sou, fui atrás.

— Sara, dá para parar com isso?

Ela não se virou. Apertei o passo e a puxei pelo braço.

— Me solta!

— Ahn, deixa eu ver... Não. Para de bosta e vamos embora.

— Você não disse que tem um monte de vadia na sua cola? Hein?? — perguntou, desvencilhando-se e metendo o dedo na minha cara.

— Sim, mas eu já tenho a minha. E uma maluca pendurada no meu pescoço é o suficiente.

— Você não é o meu dono.

— Acha que eu não sei?

— Eu faço o que eu quero!

— Tenho certeza que sim.

Ela veio comigo, mas foi andando na frente fingindo que não me conhecia. Alguns minutos depois estava segurando o meu braço e perguntando qual era o tamanho do meu amor por ela.

— Assim, ó, bem grandão — mostrei abrindo bem os braços.

— Verdade?

— É lógico.

— Por que é lógico?

— Porque é.

Passamos por uma banca de jornal e eu fiz questão de enfiar uma porrada naquela lateral de alumínio onde todo mundo gosta de enfiar a porrada quando está bêbado.

— Tá bêbado?

— Tô nada.

— Então porque cê fez isso?

— Porque deu vontade. Bate você também.

— Eu não sou idiota que nem você.

— Minha garota.

Chegando no nosso apê bebi um pouco de água. Tomamos banho, pusemos as nossas roupas de ficar em casa e assistimos à novela deitados de "conchinha" no sofá-cama da sala. Quando a novela acabou, brincamos um pouco de papai e mamãe. Apesar do porre, foi bom.

Depois nossos dois gatos vieram deitar nos nossos pés. Depois nossos outros dois gatos também acharam um lugar no meio da gente.

— Eu te amo, bebê — ela disse, e me deu o beijo de boa noite.

— Também te amo — respondi.

Antes de dormir fiquei pensando numa frase do velho poeta bêbado; era algo como: “A vida até que pode ser bem razoável às vezes”.

Gilberto Sakurai “O Maldito Escritor” 01/03/2010

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Gilberto Sakurai
Enviado por Gilberto Sakurai em 31/07/2016
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