UM FANTASMA COMUNISTA
UM FANTASMA COMUNISTA
No início do primeiro ano de faculdade, em 1968, fiquei alojado no Ginásio do Tarumã. Curitiba era uma cidade bem diferente da grande metrópole em que se transformaria a partir dos anos 70. Eu e quatro colegas descobrimos que havia um alojamento nas dependências do ginásio, com acomodações bem confortáveis, e custo muito baixo. O zelador, Sr. João Jobim, prontamente nos atendeu, providenciou roupas de cama e limpou o local
Jobim, a julgar pela aparência, era uma pessoa sofrida, judiada pela vida. Mancava de uma perna em consequência de um tiro no quadril, e sempre que podia colocava a mão mostrando um grande buraco no glúteo esquerdo onde a bala havia se alojado. Possuia diversas cicatrizes no corpo e aparentava mais do que os seus cinquenta e poucos anos. Aos poucos fui conhecendo melhor o zelador. Passei várias tardes escutando o Sr. Jobim contando sua vida, falando das diversas experiências que teve. À medida que fomos nos conhecendo, ele foi relatando detalhes que havia omitido nas primeiras conversas. Eram estórias impressionantes que, pela maneira que eram contadas, eu acredito que aconteceram. Em nenhuma ocasião notei uma vontade de se orgulhar do que contava ou querer impressionar os ouvintes.
Uma vida repleta de estórias picarescas, política, aventuras, tiros, fugas, contrabandos, etc.. Com os fragmentos ouvidos, consegui montar um resumo geral da trajetória do Sr. Jobim. A sequência correta dos eventos não lembro, mas o resumo conto a seguir.
Em 1935, José Jobim prestava serviço militar no 3ºRI (Regimento de Infantaria), quartel localizado na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Getúlio Vargas mandara fechar a ANL- Aliança nacional Libertadora, comunista. Luis Carlos Prestes, em represália, organizou revolto em quartéis de Natal, Recife e Rio de janeiro em uma tentativa de tomar o poder. Jobim fazia parte dos comunistas que tomariam o quartel. Duas horas da manhã do dia 27 de novembro, apagaram as luzes, invadiram alojamentos de cabos e sargentos atirando e diversos militares foram mortos ainda dormindo. Prontamente dominada, às 13 horas a revolta tinha acaba do e presos todos os componentes do grupo Preso, incomunicável, algemado e vendado, Jobim passou vários dias viajando, sem saber onde estava. Sentiu que descia do caminhão e embarcava em um navio. Dias depois, desembarcou em um presídio rodeado de mar. Getúlio havia ordenado que os revoltosos fossem presos em Fernando de Noronha. Segundo Jobim, o que hoje é um paraíso, em 1935 era um inferno. Os presos circulavam livremente pela ilha, o mar era o muro do presídio. Nas horas das refeições e de dormir eram contados e, se faltasse algum, era caçado como um bicho e, muitas vezes, morto. Presenciaram também o assassinato de vários guardas, mortos a golpes de estiletes feitos com cabos de conchas de servir sopas. Uma vez por mês um barco chegava trazendo víveres e novos presos. Jobim se escondeu no porão do barco e aguardou a partida. No meio da viagem foi descoberto e jogado ao mar, 15 km antes de chegar à costa pernambucana. Foi parar em uma praia praticamente sem vida e pescadores o acolheram. Recuperou-se em alguns dias e começou uma longa viagem de volta ao Rio de Janeiro, na clandestinidade, pois era procurado pela justiça.
Virou andarilho de estrada e, em cada cidade que passava, permanecia um tempo para conseguir dinheiro e prosseguir sua jornada.
Em Recife montou uma banquinha com aquele jogo de adivinhar onde esta a bolinha. Jobim movimentava os copinhos enquanto um parceiro procurava desviar atenção do apostador. Manipulava de modo que nem sempre o apostador acertava principalmente nas apostas mais altas. Final de tarde, dividia o dinheiro com o parceiro. Vez em quando era obrigado a sair correndo, ou da polícia ou de um apostador lesado e furioso.
Em Belo Horizonte, arrumou um sócio marceneiro. O cara fabricou, em madeira, réplicas perfeitas de câmeras fotográficas de última geração, tudo pintadinho de preto, e eles montaram um estúdio para selecionar modelos e fazer “books” para moças. Colocou anúncio em jornal e, dia seguinte, várias moças aguardavam na porta do “estúdio” para os testes fotográficos. Cada uma tinha que pagar uma taxa alta para custear as despesas dos testes. No primeiro dia arrecadaram uma boa importância, o que se repetiu no segundo e terceiros dias. No quarto dia, de manhã viram de longe suas “máquinas” quebradas, os restos amontodados na frente do “estúdio”, dois soldados e uma viatura aguardando a chegada dos proprietários. De onde estavam deram meia volta e sumiram no mundo. Assim Jobim foi levando a vida, na clandestinidade. Era a época do Estado Novo e Getúlio mandava caçar comunistas com as tropas integralistas, uma versão brasileira das SS alemães. Durante a segunda guerra Jobim fazia contrabando em Foz do Iguaçú, atravessando com barcos o rio, de um país para outro. Lembro-me bem dele comentando: “- Enquanto havia uma guerra na Europa, eu vivia outra no Rio Iguaçú. A polícia de fronteira não perdoava ninguém e tive muito companheiros feridos e presos. Foi nessa época que levei esse tiro na bunda e quase morri.” Belo dia soube que seu irmão gêmeo, João Jobim, havia falecido no Rio de Janeiro. Falou com o advogado da família e, depois de muitas manobras, o morto foi enterrado como sendo José Jobim, o comunista qua havia participado doze anos atrás da Intentona Comunista no 3º RI na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Assumiu a identidade de seu irmão e passou a ser João Jobim.
Paulo Miorim
29/07/2016