O CASO DE UMA INIMIZADE RECENTE .
Posso dizer que já fomos amigos íntimos, tipo unha e unha . Fomos companheiros inseparáveis nos meus melhores passeios, nos churrascos da família , em festinhas nas casas dos vizinhos e até mesmo no casamento dos meus filhos.
Estivemos grudados nas viagens e nas vezes em que enfrentei estradas e engarrafamentos foi quem mais me encorajou a seguir em frente , não desistir e ficar tentado a voltar pra casa .
Fomos tão amigos que quem mais me ajudou a ser pontual nos compromissos , como também ensinou a ter um completo desprezo por qualquer tipo de atraso não poderia ter sido ninguém melhor.
Durante muitos e muitos anos dormimos e tomamos banho juntos e antes que me compliquem e interpretem equivocadamente sobre quem estou falando, deixo bem claro que é do ex amigo , o relógio de pulso .
Tenho que reconhecer que ele nunca me deixou na mão, nunca me traiu, sempre foi muito sincero mas por outro lado, depois de um certo período de intimidade começou a me escravizar , a tomar conta das minhas ações diárias e , pasmem , a exigir cada vez mais do meu tempo , me dando muito pouca trégua para que simplesmente eu não fizesse nada, absolutamente nada .
O conflito começou pequeno, sem muitos arranhões, mas a medida que minha idade avançava fui me desligando de várias obrigações e responsabilidades, embora não deixasse de me manter ativo mas só que, sem hora marcada .
Isso meu relógio pareceu não suportar e não perdoou. Como se ganhasse vida começou a conspirar para que me requisitassem com mais freqüência e por períodos muito mais demorados e então, era inevitável o cansaço .
Quem me conhece de perto sabe que não sou de ficar parado, que estou sempre fazendo alguma coisa, ou lendo, ou escrevendo, ou ouvindo minhas clássicas músicas mas atoa, do tipo que fica balançando na rede na varanda, não me lembro a última vez que lá estive .
Hoje em dia não me estresso quando tenho que viajar e pra mim , felizmente durmo até a hora de acordar e pela manhã procuro dispensar a hora marcada .
Não quero dizer com isso que tenha aposentado meu relógio atual, que para falar a verdade, me acompanha há mais de dez anos .
Entretanto, como já sou setentão não creio que seja necessário me guiar pela pontualidade britânica em nada, e isso porque não combino mais nada com hora marcada .
Se vou ao médico é por ordem de chegada , se vou ao dentista é por ordem de chegada e quando vou ao McDonald’s ou ao Spoleto quem determinada minha chegada é a intensidade do meu apetite.
Então, não ignoro que meu relógio não tem gostado muito disso já que na maioria dos meus dias ele tem ficado descansando na mesinha de cabeceira . E tem dias e noites que ele nem olha mais pra mim .
Eu entendo . Deve ser caso de inimizade recente, mas perfeitamente compreensível...
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(...imagem google...)