Relatividade
O mal de nossa sociedade é querer relativizar os absolutos
e absolutizar os relativos.
Antonio Francisco
e absolutizar os relativos.
Antonio Francisco
Meus cães brigaram há umas três semanas. O rottweiler é um chato, gosta de se impor sobre os outros machos da casa e tem particular implicância com o labrador. Este último, estabanado e bonachão, sempre se sujeitou às bocadas e empurrões do outro, mas um dia se aborreceu e resolveu revidar. Acabou levando a melhor. Os dois rolaram um barranco e o branquelo, mais ágil, caiu sobre o outro, conseguindo agarrá-lo pela nuca, fazendo uns belos cortes no cangote do negão que, para mais azar, quando finalmente encaixou um bom golpe no pescoço do outro, enfiou um dos caninos no elo da coleira dele, perdendo o dente e rasgando toda a gengiva.
Resultado, lá fomos nós com o temido rottweiler, focinheira na boca, todo ensanguentado, para o veterinário. As pessoas, ao saberem que foi briga, perguntavam qual era o outro cachorro e duvidavam da resposta: “Não acredito! Os labradores são tão mansinhos!” e eu contava a história toda de novo. Cansei. Passei a dizer que foi um pinscher só para, logo em seguida, rir e dizer a verdade, ao que a reação era sempre um aliviado “ah, bom!”
Ora, pois. Então, diante da absurda possibilidade de um pinscher ter feito aquele estrago num rottweiler, até que não era tão improvável que o autor da façanha fosse um doce labrador.
Bem humano isso de relativizarmos as coisas. É bom por um lado, pois nos ajuda a absorver perdas, perdoar erros, celebrar pequenas vitórias, valorizar o que realmente importa. Tivemos a casa invadida por ladrões há alguns anos, mas, todo o prejuízo financeiro perdeu relevância, quando, imaginando o que poderia ter acontecido com minhas cadelinhas, as encontramos vivas e bem. Ataulfo Alves canta em “Errei, sim”, com muita propriedade, como uma traição conjugal torna-se aceitável. Ficar de pé não é grande coisa para a maioria de nós, mas, imagina o que sentiu a atleta Laís Souza, que ficou tetraplégica após uma acidente de esqui em 2014, ao conduzir a tocha olímpica nessa posição.
O lado ruim é que também relativizamos o que não pode ser relativizado. Apoiamos justiceiros, culpabilizamos vítimas, alimentamos preconceitos. Relativizamos a própria barbárie, até que ela nos parece civilizada.
Texto publicado no jornal Alô Brasília de hoje.