Candura e flegma

 

Revisava a tradução de um romance inglês água-com-açúcar, quase na linha da inesgotável Coleção Sabrina ("romances preciosos", como diz na capa o selo dessas pequenas brochuras vendidas em bancas de jornais), quando uma curiosa fala da protagonista dissipou por um instante o tédio mortal que eu sentia no manuseio daquelas laudas.

Contemos meio por alto o que se passa no terceiro capítulo da historieta, onde me deparei com a tal fala.

Sophie aceita o convite de Richard para um jantar à luz de vela no mais sofisticado restaurante da cidade, com seus ambientes especiais para o pessoal que está nadando na grana. A certa altura, como era de esperar, o animado papo entre os dois deriva para o balbuciante tema do amor. Ambos vinham de um relacionamento falhado, tinham lá suas queixas contra os antigos parceiros, resolveram partir para outra, e agora parecem encarar esta nova possibilidade, apesar dos bons ventos e do excelente serviço de mesa que lhes proporciona um maître exclusivo, com algum ceticismo. Ela, coitada, mais do que ele. Tanto que, depois de espetar com um palito de prata uma gorda azeitona verde, deixa escapar com amargura: "I do not give a fart in hell for love."

Que situação a de Richard, diante de uma bela mulher a tal ponto descrente das coisas da paixão! E que situação a do tradutor, se estivermos atentos ao clima romântico de toda a cena, luz de vela e o escambau, sendo obrigado a passar para o português, com todas as letras, o que dissera a grande heroína: "Não dou um peido no inferno pelo amor."

Achei o máximo a candura de Sophie e a infalível flegma do garanhão londrino, que não acusou estranheza nem desconforto. Mas como o nosso editor não admite nunca, nesse tipo de publicação, o que ele chama de chulismo e grosseria, liguei preocupado para o tradutor, sugerindo que naquele passo ele estivera talvez diante de uma expressão idiomática e que deveria adaptá-la à nossa maneira de dizer, escolhendo, por exemplo: "Não dou um tostão furado pelo amor."

Ele, sim, é que deu boas risadas do outro lado da linha. Afinal, explicou-me, com ou sem expressão idiomática Richard e os leitores ingleses ouviram efetivamente as palavras "fart in hell" ("peido no inferno") saídas daquela boquinha tão sedutora.

"Considere, meu amigo", disse ele, "que o próprio autor montou uma cena cheia de romantismo e não hesitou em emprestar esse linguajar de marujo bêbado à pobre Sophie. Deixe como está. Qualquer coisa, mande o Sampaio falar comigo."

Esse é dos bons. Gosto de profissionais que não têm medo de encarar o Sampaio. Se ele vai mesmo segurar a peteca, deixemos "peido no inferno". Como diz a sabedoria dos patrões, a gente ganha mal mas se diverte.

[19.7.2007]