A Variação da Responsabilidade
Bem certo é que a porta sempre é menor a casa. Tenha ali seus dois metros e poucos centímetros, mas sempre dá entrada a algum mundo decorado.
Conto-lhes isto, pois me deparei a esta situação, como mudo ouvinte, à mesa de ferro de um bar posto a esquina de alguma rua qualquer. Defronte a mim aqueles cinco.
Poupo-lhes tempo em descrevê-los, pois não há nada de anacrônico em suas caracterizações. As calças de brim e as camisas de malha grosseira. Os cabelos postos como saídos do travesseiro. E pela grossura das cinturas, nada de muito diferente, com alguma saliência ali pelo álcool sempre consumido.
Nada de negros ou caucasianos. Estamos a falar da tonalidade mais abrangente deste país, que é o mestiço; ora, dificilmente se encontra linhagens sanguíneas que sejam de têmpera definida. Ainda que gráficos mostrem algo diferente.
Mas estavam a minha frente, e eu sentado a observar da mesa de trás, sem companhia alguma. Até que o mais castanho de cabelos veio a dizer:
- Aquele goleiro, que se meteu a cobrar pênalti, pensando ser o Ceni, é irresponsável, por isso perdeu.
- Ora vá! – Protestou o outro.
- Isso é ridículo!
- O que é ridículo?
E desembestaram a rir.
- Ué! É irresponsável quem perde pênalti?
- Claro que é!
- Por quê?
- Porque é tirada a oportunidade de outro que estaria melhor.
- Mas venha cá! Como que se tira a oportunidade se a escalação já é pré-definida?
- Ele, por si só, já deveria ter a complacência de reconhecer suas limitações físicas e dar chance a quem se habilite melhor.
- Mas você diz como se o futebol fosse esporte de frieza e cálculo. – Protestou o mais baixo, que parecia tomar partido daquele que não concordara que a perda da penalidade é ato irresponsável.
- Mas deve ser! Pois a análise é de grande importância para o acerto.
- Análise de quem está de fora. Daqui é facílimo coordenar o que é direito ou esquerdo, quero ver viver a pressão.
- Ganham milhões para isso! – Disse o afro e mais parrudo.
- Milhões de cédulas não acalmam o subconsciente em situações de emoção.
- A verdade é que o dinheiro é exatamente para atravessarem tais situações. – Declarou o castanho, redarguindo o caucasiano e mais de boa forma corporal.
E seguiu-se assim este tópico de reflexão momentânea, que pelo alardear de vozes querendo sobrepor-se a outras, amalgamavam-se já em discursos de querela desordenada, rivalizado de dois para cada lado e um mudo. Somente seguiram.
- A verdade é que me parece ser grande falta de responsabilidade, pois a penalidade é um dos atributos básicos de um atleta de futebol.
- Nunca!
- A finalização básica! Como não?... Óbvio que quem perde, é porque não treinou devidamente.
- Mas pelo amor de Deus!
- Quer dizer que um erro é tão condenável?
- Sim! Pois se trata do preceito básico da profissão. Há aquilo que não se admite erro. – Teimava o castanho.
- Pois bem! Então vamos: há aqui uma prova. Dez questões valendo dois pontos em cada. Se errar duas, uma chamada fácil e a outra difícil, qual pontuação é descontada para cada?
- O que quer dizer? De acordo com a proposição, é descontado dois pontos para cada.
- Pois aí é que está! O desconto é igual. – Declarava bravamente o de melhor forma física. – A consequência do erro é a mesma para situações fáceis e difíceis, digo na realidade do jogador de futebol. Por isso que não faz sentido condenar aquele que comete erros nesta ocasião.
- Como não faz?
- Me deixe completar. – Pediu a palavra o mais baixo. – Pelo o que entendi é o grau de dificuldade, que nunca se altera, porém a situação pode ser submetida ao acaso. Como um atleta executando boa cobrança e errando ou aquele não chutar tão habilmente, mas acertando.
- É exato!
- Pois bem! Então me dê à palavra; vamos voltar a sua hipótese, mas me deixe moldar um pouco a realidade: vamos supor que um professor elabore o tal exame. E este diga que da primeira a quinta, não irá somar pontos para acerto, pois são questões básicas, porém, se forem erradas, descontará, pois são erros inaceitáveis, pois todos que estudam a matéria deveriam saber de cor e salteado.
- Gostei dele! – Alegrou-se o afro.
- Se errar, o que sou? Um mero irresponsável! Pois deveria ter estudado o suficiente para não titubear naquilo que é bisonho de se confundir.
- Mas você mudou tudo! Como fica a pontuação geral do exame? – Disse o caucasiano de boa compostura.
- Isto não é lá coisa importante. Se as tais questões fáceis não somam, então o valor está naquelas primordiais. É tudo fator de elaboração.
- Bem... Vendo deste ponto. – Analisou a contragosto o baixo.
- Isto ainda não me convence nada. Pois as tais questões não valeriam pontos se fossem acertadas, porém descontaria se fossem erradas. A situação é sempre desvantajosa. Já as penalidades tendem para a vantagem ou o malefício. Por isso não aceito o seu exemplo.
- Não aceita, pois analisa por lógica e matemática. O que eu quero demonstrar é que o primordial deve ser bem executado em qualquer ocasião e relativo a qualquer profissão ou postulante a uma. Pouco importa.
- Continuo não crendo nisso. Para mim é intolerância.
- Intolerância? – Contestou o afro. - Então vamos: Não admitir um erro em penalidade, que é um atributo básico de um atleta, é intolerância, correto?
- Pois sim!
- E se eu, como médico, erro preceitos básicos de enfermagem para com um paciente, é tolerante?
O baixo e o caucasiano entreolharam-se, como se não soubessem replicar esta retórica quase invencível. Já o castanho acostou um ligeiro sorriso de triunfo ao semblante.
- Desse modo você não estaria deixando de considerar que ao caso do jogador de bola, o goleiro poderia fazer a diferença, diferente do teu caso? – Perguntou o baixo.
- De maneira nenhuma. Estou vendo de forma contígua, somente de um lado. Deste modo o goleiro faz parte do obstáculo, tanto como a resistência que os problemas do paciente me apresentasse seria um infortúnio a ser superado.
- Como isso? O atleta possui uma série de fatores que podem levá-lo ao desgaste emocional, tal como milhares o assistindo, um grupo de jogadores confiando em si, a necessidade e vontade de vencer... Como é possível condená-lo por erro cometido em meio a tantas formas de desestabilização? – Inquiriu o rapaz.
- E ao meu caso o cansaço mental poderia vir da responsabilidade de ter uma vida em minhas mãos, que depende de mim. Isto já serve?
- Acha mesmo essa comparação cabível?
- Claro que acho!
- Pois eu não acho! – Exclamou o baixo.
- Pois claro que não! Não lhes convém. – Fomentou o castanho.
- A situação é a mesma em vencer uma final, para o jogador, como salvar a vida para o médico.
Decerto, que eu, apenas entretido ao fundo, senti que se há um código de honra entre médicos, este homem acabava de apunhalá-lo com a frieza de sua comparação.
- Errado! Isso é loucura! Um campeonato pode ser vencido ao ano seguinte! E a vida de alguém...
- Nunca poderia! Não seria do mesmo modo!
- Como não?
- Os mesmos jogos. A torcida. Os gols. A ocasião... Nada!
- Mas mesmo deste modo! Ainda que em circunstâncias diferentes, seria possível alcançar o objetivo novamente. Mas quanto ao seu caso...
- Tudo bem! No meu caso seria muito possível. Se um campeonato é perdido e no ano seguinte pode ser recuperado, quando uma vida é perdida, recupero pelo próximo paciente.
Neste instante, quando mesmo eu já havia me desapercebido da presença do quinto elemento, este sujeito, que agora me pareceu ser mais tacanho que o outro que complementava, ergueu a mão ao sinal de que deveria falar.
Ninguém o fez esperar, pois nada dissera desde o início do debate. Que fale, pois.
- Me diga uma coisa: - Dirigiu-se ao afro. – Qual a base humana do futebol?
- Base humana? – Admirou-se o castanho.
- A torcida.
- De modo nenhum.
- Sim! O jogador.
- Exato! E de onde vem o jogador?
- Da categoria de base.
- E quem é esse?
- Esse é um jovem que se propôs a jogar bola e se embrenhou nessa atividade.
- E de onde vem ele?
- De alguma família.
- E esta família é...
- Pessoas de laço sanguíneo e afetivo.
- E de onde vêm estas pessoas?
- Dos antepassados.
- Não pergunto a raiz, mas onde eles se assentam e se desenvolvem?
- Ora, na sociedade. – Respondeu o partidário do afro.
- Pois é isso! Na própria sociedade. A grande diferença é que o teu caso é relativo a algo maior do que o outro.
- O que quer dizer? – Perguntou o afro.
- Quero dizer que os teus erros básicos de enfermagem, que viessem a comprometer a vida de algum sujeito, seriam intolerantes, pois diz respeito à célula social, que é o indivíduo. Nesta situação poderiam perder-se engenheiros, cabelereiros, varredores, outros médicos, motoristas, advogados, e até mesmo... Atletas de futebol.
Quando... Noutro caso, apenas vai abaixo grande aguardamento de um grupo ansioso.
- Continue. Ainda não entendo. – Propôs.
- Pois irá entender. Se uma espécie de criatura mística que possui o poder sobre-humano lhe indagasse o seguinte: tu preferes perder a vida do teu ente ou saber que teu time perde a final do torneio? Qual a tua resposta?
- Ora! Claro que o torneio!
- Pois aí está. Você nos propôs a responsabilidade como fator invariável e único. Eu lhe mostro que não é assim, e varia totalmente de ocasião para ocasião. Uma vida em tuas mãos pesa muito mais do que a realização de um tento que irá regozijar o teu orgulho e abrasar o entretenimento dos outros.
- Me diga o que afetaria mais o tal médico: perder uma vida de um conhecido em suas mãos, ou presenciar o atleta de seu time jogar para fora uma bola de título?
- A segunda!
- E agora me fale; o que mais afetaria um atleta: falhar em uma penalidade decisiva ou perder um ente querido?
- Claro que perder a vida do ente.
E isto tudo é o que estamos discutindo. Por isso, comparado ao que foi apresentado, o atleta não é irresponsável pela perda de uma penalidade como um médico é pela forma primária com que erra um procedimento básico e coloca em risco a vida. E as tuas respostas apenas confirmaram o que estou dizendo. Perca-se uma partida, mas não um indivíduo.
Confesso que não mais os observei. Apenas levantei-me e fui saldar o que havia bebido. Simplesmente não me houve coragem de voltar os olhos para aquela mesa pejada de figuras contemporâneas de módica sociedade, mas que àquele instante alvitraram em um debate de alta reflexão.
E como aqui já disse: a porta sempre é misteriosa, pois esconde o que se passa aos confins da casa.
Neste caso a simples questão futebolística fora como uma grande porta rústica e maciça; porém, em tanta perspicácia e atenção aos detalhes desta casa, descobrimos uma recamara chamada ótica, e que se escavada, nos leva a literal filosofia moral. Que nada mais é do que o pleno esclarecimento da ordem.
Daquele dia não mais praguejei os atletas que vieram a perder penalidades, ainda que de forma imperita e negligente, pois a resolução daquele rapaz fez-me perceber para sempre que há o que é muito mais importante do que o futebol.