O INCENDIÁRIO
     
       Dom Hélder Câmara não era apenas um sacerdote, era muito mais que isso: era um bravo revolucionário. Aliás, um bravíssimo revolucionário. Posso garantir que nunca conheci ninguém tão manso e ao mesmo tempo tão valente.
     Pura calúnia dos generais, dizer que ele era um lobo na pele de um cordeiro. Pura calúnia mesmo! Porque ele, além de ser um homem de alma transparente, era uma criatura de índole mansa e pacífica.
      Mas apesar de manso, o bom velhinho tinha um espírito combativo, e não levava desaforo pra casa. Ao se deparar com qualquer forma de injustiça, transformava-se numa verdadeira fera, bem mais selvagem que um simples lobo.
      Dono de uma oratória poderosa, ele tinha um dom ainda maior: era um líder por natureza. Sempre o achei muito parecido com um incendiário, daqueles que ateiam fogo nas almas das pessoas para depois conduzi-las com pacificidade e sabedoria.
      Os militares, que nunca gostaram dele, torturaram e mataram um amigo de quem muito ele gostava, o padre Antônio Henrique. O crime era pra funcionar como uma espécie de aviso:
      - Hoje foi ele, amanhã será você.
     Era preciso, contudo, mais que simples ameaças para intimidar dom Hélder. E para mostrar que não tinha medo de ditadura nem de coisa alguma, ele arrebanhou vinte mil pessoas para o enterro do padre Henrique.
    Naquela época, no trajeto para o cemitério, quase aconteceu uma tragédia. Quando os militares tentaram impedir a passagem do cortejo fúnebre, numa demonstração de força e de autoritarismo, a multidão revoltada mostrou-se disposta a ter um enfrentamento com os soldados. Não fosse a intervenção pacificadora de Dom Hélder, tudo teria culminado em derramamento de sangue.
      Ainda que Dom Helder não tivesse medo dos militares, as pessoas temiam que alguma coisa de ruim lhe acontecesse. Assim, quando ele participava de alguma cerimônia, alguém sempre lhe aconselhava:
      - Ao discursar, não fale contra os militares nem da morte do padre Henrique.
     Inútil qualquer conselho ou aviso, pois nada podia calar a voz daquele destemido revolucionário: nem avisos, nem conselhos, nem ameaças de morte. E durante seus discursos era só no que ele falava, de como os militares tinham sido cruéis e covardes ao matarem o padre Henrique.
     Ainda me lembro, quando ouvi pela primeira vez um de seus belos discursos. Naquela noite, ele não falou somente de Deus. Mas, aproveitando o momento, criticou severamente a ditadura militar. Havia muita gente ali, inclusive alguns amigos meus. Um deles, cheio de medo, comentou:
     —  Meu Deus! E se a polícia vier aqui? — A gente pode apanhar e até ser preso. O
 pior é que ele pode ser preso também. 
   — E se ele for preso, pode até ser morto. Será que ele não sabe disso? — perguntou um outro.
    Saber ele sabia, só que não tinha medo de coisa alguma. Nada, absolutamente nada o amedrontava. Porque pra nascer com a coragem de Dom Hélder, digo sem a menor chance de errar, nasce um homem a cada cem anos.


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JOTA SANTIAGO
Enviado por JOTA SANTIAGO em 20/07/2016
Reeditado em 15/03/2020
Código do texto: T5703137
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