O Drama do Vira-latas: o caso Brasil
O vira-latas olha para os seus políticos e representantes. Sorri estranhamente dizendo que o seu país não tem mais jeito. O vira-latas olha atrasos no evento das Olimpíadas e sorri convencido mais uma vez que nada aqui presta.
O vira-latas quase tem um orgasmo quando sabe da classificação internacional ruim do Brasil no ranking educacional. Ele olha para o governo, olha para seus compatriotas e diz "isto é Brasil". Então sorri, pois esqueceu em quem votou e em que tipo de ideologia apoia com suas atitudes.
O vira-latas se vê com um pedigree especial. Ele não é negro, ainda que seja não se considera como os outros. Ele não é nordestino, ainda que seja, não se considera como os outros. Ele não é rico, mas ainda que não seja, não se considera como os outros.
O vira-latas diz que não ouve funk, pois tem cultura. Diz que sabe falar duas línguas, pois tem cultura. Diz que ouve MPB, pois tem cultura. Diz que gosta jazz e arte contemporânea, pois tem cultura. Lê filosofia, pois tem cultura. Tem papo-cabeça, pois tem cultura. Menos o outro, pois o Brasil não tem cultura.
O vira-latas se olha no espelho e diz este não sou eu. Passa maquiagem, troca de roupa e adquire novos gostos. Olha no espelho novamente, não se sente mais brasileiro e sorri se sentido num mundo distante daquilo que chama de Brasil.
O vira-latas liga para a Central de Atendimento dos Correios. Escracha a atendente e o sistema. Responsabiliza algo do brasileiro pelos atrasos e pela frustração que sente em relação a tudo. Ele acha que as coisas poderiam ser melhores, mas não serão por que há algo no brasileiro que não deixa. Então, cruza os braços, toma sua cerveja e ri mais uma vez da bagunça em que se encontra seu país.
O vira-latas vindo pra casa em mais um dia de trânsito lento e cansativo. O dia escurecendo e ele preso no seu carro. Olha para o lado e vê o Brasil em toda parte: no caos, nos acidentes e nos pedintes nos semáforos.
O vira-latas vê Brasil no carro adiante que ultrapassou com o sinal fechado. Mas não vê Brasil quando rouba a preferência de outro motorista. Não vê Brasil quando atrasa suas contas ou quando pega uma nota fiscal falsa pra abonar no imposto de renda.
Ele vê Brasil na pobreza do outro, nos crimes do outro e nas classes miseráveis. Ele não vê Brasil nele mesmo. Não vê Brasil nas vantagens que o fizeram chegar onde poucos chegaram. Não vê Brasil nas excelentes escolas que o dinheiro do pai pode pagar, mas ele vê Brasil no assalariado e diz: "por que não estudou pra ser alguém melhor na vida".
O vira-latas que vê Brasil em tudo de ruim que reconhece se diz esforçado e inteligente, por isto tem tudo o que tem. Ele pensa isto enquanto passa de carro cortando um ônibus lotado de trabalhadores assalariados saindo do emprego para a favela onde moram.
O vira-latas se vê tranquilo diante do caos. Ele paga seus impostos e prefere se sentir roubado pelo governo do que compromissado a participar de forma mais inteligente da política. Por isto ele sorri, mesmo quando paga colégios, planos de saúde e segurança particular, pois saber que apesar do prejuízo ele se exime de compromissos.
Assim ele pode chamar tudo isto de Brasil, se eximir de responsabilidades e sorrir.
Ele acha que carrega o Brasil nas costas, acha que o país não é generoso com ele e nem lhe paga o quanto deveria - acha que o Brasil lhe rouba todos anos em impostos. Ele diz isto e depois se lembra que precisa passar no banco para confirmar o financiamento da casa de praia, que pretende comprar antes deste ano acabar.
O vira-latas vê a miséria, a pobreza e até doa para o Criança Esperança. Mas acha que o Brasil é muito injusto com ele. Que trabalha muito e não tem nada na vida. É chamado de doutor pelos mais simples e pelos seus pares e mora em um endereço privilegiado próximo a um shopping center.
O vira-latas, aquele que tanto reclama desta bagunça que é o Brasil, é parado numa blitz levemente embriagado e com documentação vencida. A autoridade cumpre seu papel lhe aplicando a lei. O vira-latas enlouquece e aponta contra o guarda sua carteira de autoridade pública para lembrá-lo de que não é como os outros brasileiros.
O guarda herói insiste em fazê-lo lembrar da igualdade jurídica que reza a lei. Indignado, o vira-latas lhe dá voz de prisão. O guarda precisará se justificar aos seus superiores e defender sua liberdade na Justiça.
Liberado, o vira-latas continua de volta para casa. Cumprimenta o porteiro e assiste no jornal o delicioso espetáculo da desgraça nacional. Sorri estranhamente e diz em alto e bom som:
Isto é o Brasil!