Carta de filho à alma do pai
Essa crônica se deve ao fato de aos domingos, após almoço sem sobremesa, ir saboreá-la num café no centro da cidade onde resido. Entretanto, devo também a um esforço permanente que tenho e, segundo alguns, comportamento de mal educado, de prestar atenção a tudo que desfila a meus sentidos e, no caso da audição, inclusive à conversa alheia.
Pois bem, saboreava pudim de café, quando ouvi na mesa ao lado comentário convidativo, para que ficasse atento. Dali poderia extrair-se material, para ser registrado. E, não deu outra...
Dizia o mais velho, beirando os oitenta, ao outro senhor, aproximando-se dos cinquenta, que seu pai morrera quando ele era bem jovem. Entretanto, do relacionamento interrompido com o pai e com o desenrolar de sua vida ficara muita coisa a dizer. A morte prematura do pai rompera as possibilidades de comunicação.
Continuou, com lamentos daquela impossibilidade de responder a algumas questões colocadas pelo pai, ser causa de frustração, durante praticamente toda sua vida adulta.
Graças a perguntas do outro senhor, entendi que essas questões se resumiam em desafiá-lo a tornar-se homem e que, para isso, precisaria plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho.
Entretanto, o mais interessante dessa minha escuta má educada da vida alheia, é que o protagonista encontrara solução. Precisava soltar o grito preso “pai, tornei-me um homem”. Além disso, demonstrar-lhe com suas realizações...
E, mais uma vez, o mais novo dos dois, parece que telepaticamente recebia minhas indagações e as replicava: “mas, como farás isso se teu pai está morto há quase 70 anos?”.
Então o mais velho, o protagonista, revelou a solução encontrada. Já ouviste falar em psicografia, perguntou ao mais novo e continuou. Pois bem, ela consiste na comunicação discursiva escrita de uma suposta alma de algum ser já falecido, por meio de outro ser, este vivo.
E continuou justificando sua a solução encontrada. O próprio termo psicografia, se levarmos em conta sua origem grega, significa escrita da alma, da psique. Então, porque esse processo não pode se dar no sentido inverso, de um vivo à alma de outro já morto? Porque um filho a tanto tempo desejoso de se comunicar com o pai, não pode escrever-lhe? Por que a força de desejo, tão grande e alimentado por tanto tempo, não pode vencer as barreiras entre o visível e o invisível, e realizar comunicação utilizando canal semelhante ao utilizado no processo de psicografia?
Foi o que fiz, confidenciou o mais velho. Estou certo de que, enquanto escrevia, a força para comunicar era tanta, que sentia que se realizava o recebimento, num processo de comunicação inverso ao de psicografia, num processo complementado pela forma de comunicação dos desencarnados.
Nessa carta à alma de papai demonstrei-lhe, que fiz muito mais do que a mim balizara, como necessário a tornar-se homem.
Árvores! Plantei tantas, que a sua exigência de uma tornou-se insignificante. Todas as cidades que visito, tenho hábito plantar pelo menos uma muda. Além do que, aqui nessa terrinha, perdi a conta e nem recordo todos os lugares que plantei.
Livros! Escrevi dois de natureza técnica: um em parceria com renomado professor que foi publicado. Mais do que isso, depois de me aposentar escrevi mais de 400 textos, que certamente poderiam ser copilados em alguns livros. Ou seja, mais uma vez extrapolei os limites estipulados.
Filhos! Dois. A melhor e maior de todas as realizações. Aqui cabe ressaltar que, sem a parceria da mulher amada, teria ficado no caminho e, segundo o padrão por ti estipulado, não me tornaria homem.
Gostaria de acrescentar ao teu desafio que, não mencionaste nada sobre escrever letras e compor melodias. Estás surpreso? Claro que não. Intuo que essa carta não seria necessária. Sempre senti que acompanhaste, nesse processo incorpóreo, a vida de teus filhos. Pois bem, mas preciso registrar que, além daqueles limites estipulados, ainda fiz mais de dez CD’s, apesar de nenhum lançado comercialmente. Além disso, tenho certeza de que gostaste da música que fiz, para tua terra natal e aquelas outras duas, especialmente para ti
Para finalizar, quero dizer-te, admirado, temido e amado pai, que o que mais me facilitou tornar-me o homem que sou, foi os exemplos teus e de mamãe. Foram os atos de extrema responsabilidade com educação e formação moral dos filhos. Isso foi tão forte, que naturalmente, com muito menos esforço teu e de mamãe, conseguimos, eu e a mulher amada, reverberar para nossos dois filhos.
Certamente, não foi essa a forma, nem o estilo de como a carta foi escrita, pelo vizinho mais velho de mesa de café. Mas, podem ter certeza, que minha experiência em garimpar material, lhes assegura, que o conteúdo é o da carta daquele filho, que presumo com aproximadamente 60 anos de saudades, fez para chegar à alma do pai.
Mas o que mais me chocou nessa história é que se o protagonista tivesse recebido a comunicação do pai não como desafio, mas como incentivo, não como padrão radical, mas como exemplos de boas realizações, que caracterizariam pegadas sobre trilhas da evolução, sua vida, provavelmente, se desenrolaria menos delineada como resposta ao desafio do pai.
Vida pressionada para responder, quem sabe, à promessa feita, a si mesmo, enquanto o pai ainda era vivo. Aguarde-me papai...