Relação de consumo diferenciada
Lá pelas décadas de 70 e 80, na esquina da Avenida Marechal Floriano Peixoto com a rua Senador Pinheiro Machado, na cidade alta - a “Vila”- localizava-se o Açougue do Seu Cândido, uma pessoa reconhecida pelo caráter, honestidade e trabalho com afinco. Era um homem popular e, no seu estabelecimento, agregava fregueses, amigos e vizinhos que por lá passavam.
Falava-se, na época, que os cortes de carnes variadas vendidas no seu açougue eram da melhor qualidade. Lembro-me de acompanhar meus pais e ficar boquiaberta com a agilidade com que ele cortava a carne com uma faca tão afiada que parecia muito mais “deslizar” do que cortar.
O açougue tinha duas portas de madeira de duas folhas na parte frontal e numa delas, todos os dias, era pendurado um enorme saco para que fossem depositados os pães produzidos pela Padaria Imperial, também sediada na Vila.
Na época a nossa turma de meninas da Pinheiro Machado era grande. Estudávamos, inventávamos nossos brinquedos (o poder aquisitivo de nossos pais não era grande), participávamos da Cruzada e entrávamos para nossas casas somente ao cair da noite. Perigo não existia.
Fomos crescendo, tomando corpo e iniciando a nossa vida social na “Rua Grande” - a Avenida Borges de Medeiros - onde localizava-se o Clube Recreativo Patrulhense, o Bar do Ataíde e a boate JIM2. Em bando saíamos, alegres, com vestimentas simples e muita sombra nos olhos, pouco dinheiro e, no meio da noite, fome grande pois, no máximo, comprávamos um refrigerante. No retorno, ao amanhecer, passávamos em frente ao Açougue do Seu Cândido e vislumbrávamos o saco de pães totalmente cheio. Por inúmeras vezes muitas de nós encostávamos a palma das mãos e sentíamos o calor dos pães recém tirados do forno, tamanha a proximidade com a Padaria, que também era localizada na Avenida Marechal Floriano Peixoto. Não resistíamos. Abríamos o saco e pegávamos algumas unidades para um bom café da manhã, geralmente na minha casa, contando com o mesmo bando, ao redor de uma pequena mesa na cozinha,sempre coberta por uma toalha xadrez.
Pasmem! No dia posterior eu contava para os meus pais quantos pães tínhamos “tomado emprestados” e, de pronto, era orientada a descer a lomba para efetuar o pagamento com o valor correspondente. Em momento algum, naquela época, o ato era repudiado, tamanha honestidade e respeito com que tudo era conduzido. Além do mais, o meu pai era grande amigo e freguês do Seu Cândido.
Os débitos dos pães passaram a ser considerados com tamanha desenvoltura que passavam desapercebidos por qualquer pessoa que, porventura, não os entendessem.
A vida girava num espaço pequeno, mas com imensa ingenuidade e compreensão. As questões mais sérias poderiam acarretar perguntas do tipo:
- quantos pães são depositados no saco diariamente?
– mais alguém pode fazer o que fizemos tão naturalmente?
– o seu Cândido pode ter algum prejuízo?
– por que vender pães num açougue? e por aí ia ...
E assim a vida seguiu de forma tão serena que ficaram as lembranças abastecidas por um tempo em que a maldade corria longe, o furto, se bem conduzido, poderia ser considerado empréstimo e as carências alimentadas com tamanha ingenuidade que merecem ser aqui registradas.
Saudade de um tempo tão bom ...
(crônica escrita em 30/06/2016 para cumprir tarefa da Gincana Memória ACISAP 2016 pela Equipe NÃO EMPURRA)