Táxi

Táxi






Jeferson. Trabalhava antes numa transportadora de valores. Ficou década e meia transitando pelo país com colete à prova de balas e carabina. Invariavelmente, pelas manhãs, não sabia se voltaria vivo pra casa. Hoje agradece todos os dias pelo fato de possuir um táxi. É novo na praça.

Pensei na vida dele e na minha. Me levou para assistir “Feira das Ilusões”, atenua certas dores uma mentira bem forjada, alegre, ingênua, com canções ao fundo.

Dona Lurdes. Roliça, cinquentona, dirige um carrão, 20 anos nessa profissão, bem humorada, gargalhou comigo, madrinha de dois cãezinhos, um que está batendo as botas de tão velho, e um criança, branquinho, peludinho, treme e morre de medo de tudo. Falei pra ela: sou igualzinho a esse aí. Ela gargalhou.

“Deixe pegadas, traga lembranças”.

Zezinho, baiano, comemora dois aniversários, o de nascimento e o da sua chegada em São Paulo, em 1974, com catorze anos de idade. Nascemos no mesmo ano. Espantoso como cheguei facilmente nessa conclusão. Sua vida antes do táxi foi um breu só.

Desci na av. Paulista ruminando que uma mudança virá, que irei mais uma vez para o desconhecido forjar memórias açucaradas para mais além de tudo, até então.

Seu Vítor. Cabelos alvos. Ativo na praça desde a época dos Afonsinhos. Mora a 5 quadras do ponto. Está vivo não se sabe como. Dois anos atrás inventou de namorar uma guria de 23 anos, colocou-a numa casa em cidade afastada da capital e descobriu que ela colecionava no mínimo 4 namorados, todos bandidos e foragidos. Não fosse um acerto miraculoso e hoje ele não estaria na direção.

Me levou para comprar um presente no bairro enluarado, comprei, pensava eu que era o meu amor, durou até ela descobrir que eu não era nada, nada, nada do que esperava encontrar.

Paulo e Aparecido, filho e pai, dividem o mesmo automóvel,
Paulo pelas manhãs, Aparecido a partir das 14, duas criaturas de fala mansa, sossegados, o filho acaba de se formar em eletrônica, o pai se formou em Brasil, uma matéria cabulosa.

Proseamos bastante daqui até o outro lado e voltamos. Cada vez que se punham em movimento, eu me lembrava: "Ame a todos, confie em poucos, não faça mal a ninguém”.

Bruno, 36 anos, carro de frota, 12 horas por dia segurando o volante, até o ano passado tocava a pequena empresa da família, fundada em 1965. Do dia pra noite viu-se sem um tostão graças a crise somada a fraude de funcionários. Está na lida do taxímetro desde novembro. Diz que recuperou a dignidade e os filhos não passam fome. Até quando? Difícil prever.

Tinha ido ver um amigo que, de modo muito peculiar, me explicou que se você deseja ter um amigo, seja um amigo.

Vanderlei. Na praça desde 1980. Paraense. Ama trabalhar. Não pode ouvir falar do governo anterior que passa mal, sente arrepios, náuseas, ânsias, frêmitos. Os pais, idosos, residentes na grande Belém, sofreram infortúnios consecutivos e estão sem mobilidade. A mãe teve derrame e o pai quebrou o fêmur. Confidenciou-me, com ânsias e frêmitos, que foi preciso arranjar parentes aqui em Sampa para irem até lá, pois lá não houve jeito, a turma só quer saber de bolsa-família, forró, motocicleta e cachaça. Palavras dele.

Milton. Carro de frota. Mora numa pensão há 10 anos. Vive da mão pra boca, com total ciência disso. Triste. Uma tristeza que paira feito perfume.

"Quando a natureza nos deu lágrimas, ela nos deu licença para chorar”.

Táxi tem acento, visto ser vocábulo paroxítono com terminação em “i”. Dado de pouca condução, presumo.

Nenhum deles me levou para o lar. A saudades que eu tenho do lar só eu sei. Na maior parte do tempo, me sinto como o cachorrinho da dona Lurdes. No tempo restante me vejo aturdido perante aos calhamaços de informação ao redor e, talvez, em nome de uma relativa auto defesa, faça uso de citações dir-se-ia pertinentes.

"O homem racional se adapta ao mundo, ao passo que o homem irracional espera que o mundo se adapte a ele. Portanto, o progresso é feito para homens irracionais".

(Imagem: Betye Saar. "Estávamos principalmente sobre sobrevivência", 2017. montagem de mídia mista, tábua de engomar etc.)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 15/07/2016
Reeditado em 23/06/2020
Código do texto: T5699016
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