Encontrão

Após vinte e nove anos de dias igualmente comuns, saio para o trabalho com uma única certeza: Nada especial aconteceria. Preferia pensar assim a criar expectativas frustradas de qualquer agradável surpresa. Havia pessoas nas ruas. Me esquivo, finjo não tê-las visto. Cabeça baixa, sigo. É sempre estranho falar com alguém e perceber o quanto a minha voz, aguda demais até para o que pensam ser um homem afeminado, causa estranheza.

Quando creio ter escapado de todos os meus carrascos imaginários, sinto uma forte pressão. O calor de um corpo me impulsiona para trás. Deixo cair meu celular e rapidamente abaixo para resgatá-lo. Ainda sem saber de quem se trata, levanto-me já pedindo perdão. Ao encará-lo, reconheço o vizinho com o qual mantinha pouco contato. Ele, hétero, cisgênero, branco, casado, pai de dois, aproximadamente 1,80cm de altura, em forma - ao menos para os meus padrões -, voz grave, barba cerrada, estilo discreto, chutaria 37 anos. Poderia ser definido como um desses machos alfa, exemplos de virilidade e pilares da "Família Tradicional Brasileira". Eu, mulher, transexual - ainda não transicionada, hétero, branca, solteira, 1,75cm, totalmente fora de forma, voz fina, jeito delicado e olhar assustado de quem estava prestes a ouvir pela enésima vez mais uma grosseria pra conta.

A essa altura já tinha pedido dezenas de desculpas, disparando feito metralhadora. Ouço um: _Tranquilo. Não foi nada. Olho seu rosto e diferente do que imaginei a expressão não era ameaçadora. _Valeu - digo, com a voz empostada ao tentar inutilmente torná-la um pouco máscula. Tolice, certamente já deve ter ouvido algo sobre mim. Em cidade pequena todo mundo é meio artista. O olhei por menos que três segundos. Retomei o meu trajeto. Um pequeno arranhão no celular novo, dividido em dez vezes e ainda não pago. E até que o saldo foi positivo.

Meio desacreditada da humanidade conheci um ser de fato humano. A minha transexualidade não o "contaminou". Continuávamos iguais, não nos faltaram pedaços e o encontrão não nos colocou na vida um do outro. Apenas esbarramos. Eu, com o respeito que poucas vezes tinha encarado de tão perto.

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