Assim ou ...nem tanto 54
A Intimidade
Deste lado do muro a terra esquecida da aridez e do sangue, dos tempos agrestes da fome, deixara crescer, como uma barba, erva daninha. Fez toda a diferença. Humanizou as pedras, vestiu outros verdes que se animaram com o acolhimento e o muro, essa fronteira de espaços, esse impedimento, deixou que o musgo amaciasse as zonas húmidas, que os fetos nascessem dos buracos e caíssem à laia de cabelos descuidados por todo o trajecto da parede que separava os mouros dos demais que medravam lá ao fundo, onde o mar travava a passagem dos que queriam acabar com a guerra.
Passear por ali era aspirar a serra inteira, terra, flores, caruma, o ar arrepiado do final do dia, a solidão. O muro era alto e para lá nada se via. Perigoso era escalá-lo, subir para libertar os olhos da proibição, imaginar outro encantamento, com pernas e nudez, quem sabe se com voz meiga no dizer estranho, pele lisa e morena, coxas firmes, sem ter ainda par, sem recusar-me por ser estrangeiro, estranho, forasteiro, sonhador e ousado.
Pensava, subia, escalava, descia e montava. Ah, puberdade, ah, sabor de céu, novidade, alturas de voo, asas de condor ou de anjo perverso e o pensamento subia e subindo ia até que, livre, aprendesse o outro lado desta agonia, deste escuro sem nada que lavasse o silêncio. Um dia a terra tremeu, o mundo gemia e o muro alto que se fendeu misturou as gentes, os credos, os medos. De lá fugiam para os meus lados e eu e os do meu modo, malas feitas com pressa, nos atirámos para lá do tempo, para o mistério, para o lado quieto da guerra, para a zona muda da tua paz de lírio. E demos as mãos e ficámos, como sentinelas, à espera do amor. Quando vieste trazias, doce, o canto de mil águas e arrastavas, como um fardo leve, a intimidade.