As cidades subterrâneas - (Texto de 1995)
A Eunice Arruda, a F.M., Almma, a Silvia, amiga, colega de magistério nos tempos da EMEF '"Bernardo O'Higgins" e do "SEA"; Antonio Jadel, Madalena de Jesus, Marcelo Z., H. Francisconi, Dalva Molina Mansano; Tânia Meneses
Dia desses eu me perturbei muito e ainda não consegui sair inteiramente de tal perturbação. Eu e meu amigo - meu amigo, não homem meu: nenhum corpo, meu nem dele, objeto de desejo para nós. Mas, o que é dizer que não tínhamos corpo? Havia sim, dois corpos ali; o dele, inteiro concentrado nos olhos fixos sobre os meus, o meu, inteiro concentrado na tentativa de fuga. Olhos do meu amigo, carcereiros implacáveis, Plutão a levar Perséfone para o reino subterrâneo; enorme abismo aberto de repente no solo da linguagem.
Ele prendia meu olhar com seus olhos, não com seu olhar. Escavava o meu olhar, arqueólogo, em busca da minha primeira cidade; sob a máscara da máscara da máscara da máscara da máscara, queria a face original. Escavava, escavava, escavava. Eu tentava detê-lo, tentava desviar o olhar, tentava plantar na minha boca um simulacro do riso da Gioconda mas, o imperativo de seus olhos desmontava-me o riso, destruía, num relance, os túneis que eu, por minha vez, escavava para fugir. Era o imperativo do silêncio total que ele me impunha; eu me desesperava feito uma raposa sem saída. Nunca, jamais tamanho pânico diante do silêncio de um amigo, não do silêncio de um homem amado. Meu amigo, amordaçando minha boca com seus olhos. O pavor. O que ele buscava? Qual era a primeira cidade, na mais funda camada de mim, a soterrada antes de todas as posteriores, aquela que eu queria jamais descoberta, por nenhum de nós dois, por ninguém?
Eu não podia me ver nos seus olhos nem no seu olhar: não sabia o que ele via. Eu via apenas os lampejos da sua ânsia de descoberta, os lampejos de seu próprio terror, em momento algum o objeto desse terror e daquela ânsia. Eu me apavorava com o que só ele via, ou estava prestes a ver. Eu, território de uma escavação que nenhum de nós dois sabia em que cidade debaixo de todas ele, meu amigo, haveria de chegar.
O silêncio. Nunca tão fundo o terror do silêncio assim imposto, assim território de busca tão abissal, assim a busca do elo perdido, do rosto perdido, escavado abaixo, abaixo, cada vez mais abaixo, transpassando, uma por uma, as camadas e camadas e camadas e camadas e camadas...das cidades sobre cidades, em pesquisa arqueológica quase inumana em busca da primeira cidade, a originária. Busca quase inumana e feita do mais fundo afeto do meu amigo, cujo verdadeiro objetivo era atingir-me e com-preender-me no arquétipo, para esclarecer-me, para clarear-me o rosto deste arquétipo, para revelar-me a gênese de todos os rostos de mim. Eu sabia que a descoberta podia petrificar-me ou me fulminar, como alguém sem preparo, petrificado diante de Medusa ou fulminado de repente diante do rosto de Deus.
Texto original de 19 de julho de 1995.
Ele prendia meu olhar com seus olhos, não com seu olhar. Escavava o meu olhar, arqueólogo, em busca da minha primeira cidade; sob a máscara da máscara da máscara da máscara da máscara, queria a face original. Escavava, escavava, escavava. Eu tentava detê-lo, tentava desviar o olhar, tentava plantar na minha boca um simulacro do riso da Gioconda mas, o imperativo de seus olhos desmontava-me o riso, destruía, num relance, os túneis que eu, por minha vez, escavava para fugir. Era o imperativo do silêncio total que ele me impunha; eu me desesperava feito uma raposa sem saída. Nunca, jamais tamanho pânico diante do silêncio de um amigo, não do silêncio de um homem amado. Meu amigo, amordaçando minha boca com seus olhos. O pavor. O que ele buscava? Qual era a primeira cidade, na mais funda camada de mim, a soterrada antes de todas as posteriores, aquela que eu queria jamais descoberta, por nenhum de nós dois, por ninguém?
Eu não podia me ver nos seus olhos nem no seu olhar: não sabia o que ele via. Eu via apenas os lampejos da sua ânsia de descoberta, os lampejos de seu próprio terror, em momento algum o objeto desse terror e daquela ânsia. Eu me apavorava com o que só ele via, ou estava prestes a ver. Eu, território de uma escavação que nenhum de nós dois sabia em que cidade debaixo de todas ele, meu amigo, haveria de chegar.
O silêncio. Nunca tão fundo o terror do silêncio assim imposto, assim território de busca tão abissal, assim a busca do elo perdido, do rosto perdido, escavado abaixo, abaixo, cada vez mais abaixo, transpassando, uma por uma, as camadas e camadas e camadas e camadas e camadas...das cidades sobre cidades, em pesquisa arqueológica quase inumana em busca da primeira cidade, a originária. Busca quase inumana e feita do mais fundo afeto do meu amigo, cujo verdadeiro objetivo era atingir-me e com-preender-me no arquétipo, para esclarecer-me, para clarear-me o rosto deste arquétipo, para revelar-me a gênese de todos os rostos de mim. Eu sabia que a descoberta podia petrificar-me ou me fulminar, como alguém sem preparo, petrificado diante de Medusa ou fulminado de repente diante do rosto de Deus.
Texto original de 19 de julho de 1995.