CÃO SEM DONO





Ninguém sabia quem era o dono daquele cachorro branco de pintas pretas, uma mistura de dálmata com vira-latas, que vivia perambulando pelas estradas empoeiradas de Tropeiros. As pessoas ficavam incomodadas, curiosas e algumas até mesmo irritadas com a liberdade daquele cão, que entrava e saia das chácaras, ora em busca de uma sobra de alimento, ora para satisfazer o seu apetite sexual em uma cadela no cio. Sumia por algum tempo, sem deixar pistas do seu paradeiro.
     Ele era meigo e manso, contudo não exagerava nas brincadeiras. Gostava de manter uma certa distância, não querendo se envolver em muitas intimidades, quem sabe, com receios de se apegar a alguém e de criar raízes em terreiros, tornando-se prisioneiro de sobras de alimento e afeto. Preferia ir para onde o nariz apontasse, pois, confiava mesmo em seu instinto, em seu faro. Cadelas no cio não lhe faltava. Cadelas de diferentes raças, pelos e cores.Todas que cruzaram seu caminho, ele cruzou, espalhando o seu DNA.
         Cão sem dono. Dono de ninguém. Livre.
     Algumas pessoas manifestavam seus pontos de vistas sobre este cão andarilho, nômade, que não respeitava cercas. Conseguira pular sobre a tela de uma chácara e engravidar duas dálmatas legítimas, que deram crias a doze filhotes, para desespero dos donos das cadelas, que juraram dar um fim naquele cão sem dono.Mas, com o passar do tempo, esqueceram a vingança, mas antes, exterminaram os filhotes.
     Quando ele era visto cruzando com uma cadela bem no meio da rua havia quem o apedrejasse, horrorizado com tamanha falta de pudor e de respeito, como se fazer sexo fosse algo abominável. No fundo era a inveja se manifestando.A cultura de que o sexo é pecado ainda está enraizada nos corações e mentes de muitos adultos. Os adolescentes, ao contrário, assistiam a tudo excitados.
     Contudo, havia quem o defendesse e mesmo tentasse, sem sucesso, mantê-lo no espaço limitado da chácara.
   Um dia, algumas pessoas infelizes, prisioneiras da impotência, planejaram exterminá-lo. Não tanto por ódio a ele, muito mais para levar sofrimento e irritação a uma senhora idosa e solitária, que muitas vezes fazia do cão a sua companhia. Todavia, eles não conseguiam se entender sobre os métodos a serem utilizados. Sovinas, nenhum deles desejava gastar dinheiro com veneno e um pedaço de carne.A pauladas era a melhor alternativa, contudo, esbarravam na consciência hipócrita e na dificuldade de apanhá-lo, pois, percebendo o perigo, ele fugia. Precisava de algo que não sujasse as mãos. Uma coisa era certa: depois de morto o cão, seria jogado no quintal da velhinha, para vê-la blasfemar contra a maldade humana. Esta era a parte divertida do plano.
     Enquanto isso o cão continuava percorrendo livremente as ruas empoeiradas das chácaras do cerrado, despreocupado e feliz.
     Os assassinos finalmente chegaram a um consenso: o cão sem dono seria estraçalhado por um pittbull. Descobriram como prendê-lo: quando estivesse montado em alguma cadela. Em seguida seria levado até a chácara de um conhecido, dono da fera, que também detestava a liberdade alheia e o pittbull faria o resto. Depois, era só levar o cão morto e sorrateiramente atirá-lo no do quintal da velhinha e assistir ao espetáculo á distância, satisfazendo seus instintos maldosos.
     Tudo isso deveria ser feito sem despertar a atenção dos vizinhos, pois ali bem próximo havia uma senhora que recolhia cães abandonados e os mantinha sob seus cuidados com a ajuda da sociedade protetora dos animais, que poderia denunciá-los às autoridades.Ela tentara levar o cão sem dono para o seu canil, mas ele sempre dava um jeito de escapar.
     Aliás, esta senhora era alvo de deboche, pois, segundo comentários de alguns, como poderia alguém dar proteção a animais com tantas crianças passando fome. Caminhão lotado com sacos de ração seguia todo mês ao local. Ela era uma senhora herdeira de uma fortuna e segundo diziam, não tinha filho, por isso, destinava suas economias cuidando dos animais abandonados. Quando era questionada, respondia: “cachorro também é gente e o dinheiro é meu, ninguém tem nada com isso e são os meus empregados que cuidam dos meus amores, são bem remunerados e vão cuidar das suas vidas, que da minha e dos meus cães, cuido eu”.
    Eles prenderam o cão e o levaram ao pittbull. E não acreditaram no que viram: os dois se deram muito bem. Protegido pela fera, ninguém ousou aproximar-se, para retirar o cão sem dono da companhia do seu novo amigo. Pelo que se conta na região, os dois vivem em perfeita harmonia, trocando carícias.




 
Esta crônica integra o livro Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do autor - 2006 - Esgotada. Editoração eletrônica: Fernando Estanislau - Capa/Ilustrações: Maizena.
 


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