O tempo vertiginoso, que segue sempre em frente, depois de certa idade ganha o efeito de um coice que lança a nossa memória para trás. Nasci e cresci numa antiga vila, de apenas 3 casas. Meus pais, ainda jovens, conviviam com vizinhos mais velhos. Na última casa, morava um casal de idosos, avós daquele que seria um dos meus melhores amigos de infância. Dias, tardes e noites em que, mesmo criança, eu intuía a força da felicidade que habitava naquele pequeno vale no meio da Tijuca. Fícus, jardins, mangueiras, roseiras, borboletas, bem-te-vis e sabiás.... Toda a poesia do mundo atravessava aquele corredor de piso em cimento e atiçava a minha noviça imaginação. São recordações de céu de brigadeiro e sol aconchegante. Meus avós, bisavós, todos vivos no carinho que me ofereciam com biscoitos, bolo de fubá, café com leite e presentes. A vida era vida.

Eu não possuía muitos brinquedos, mas tudo se transformava em brinquedo nas minhas mãos. Uma lata, uma caixa, um pedaço de isopor, calha de automóvel, imã, bonecos de palito de fósforo, chaveiros, todos assumiam almas que dialogavam nas fantasias e histórias criadas em cima do sofá da sala, que se transformava em montanha e cenário para os improvisados personagens.

 
Ás 7 horas da manhã, em ponto, tocava a sirene da fábrica da Brahma, que era próxima à minha rua. Estudei em colégio público e todos os dias hasteávamos a bandeira cantando o hino nacional. Depois, em fila e em ordem, entrávamos na sala de aula. Havia um gosto bom em tudo. Distraído, enquanto a professora ensinava, eu via caixas e mais caixas de cerveja subindo e descendo ao longe, pelas esteiras da velha fábrica de cerveja. Aquilo me hipnotizava, lembro mais das caixas rolando do que das lições da tia. Ao meio-dia, esperava minha mãe me buscar em frente ao Corpo de Bombeiro, que ficava na mesma rua da escola. Uma enorme amendoeira fazia a sombra que me acolhia antes do retorno à pequenina casinha de vila que emanava tanta personalidade quanto todos da família.
 
Nos fins de semana, tinha sessão Tom e Jerry no Metro Tijuca, um cinema imenso da Praça Saenz Peña, que logo na entrada nos avisava sobre o seu “ar-condicionado perfeito”. Eu e meu pai nos divertíamos juntos com as acrobacias do gato e do rato. Um dia, no mesmo Metro, me levaram para assistir ao “Mágico de Oz”, então a música, a voz da Judy Garland e as malícias da bruxa má do Oeste se entranharam definitivamente na minha Yellow Brick Road.
 
Criança, me fascinavam as maquetes. Quando eu e meus pais entrávamos nos stands de empreendimentos imobiliários, que erguiam prédios em cima das mansões centenárias da Tijuca, me perdia nas miniaturas do “Sérgio Dourado”, que pareciam promessas utópicas sobre o futuro que me aguardava. O futuro em mim foi uma névoa pálida que se escureceu com os anos...
 
Mais tarde, deixava a vila para ir aos arrastas, que era como chamavam as festinhas de adolescente, dançava “Michelle” e “Yesterday” de rosto colado e ouvidos inebriados pelos Beatles. Eu me via feio, sem confiança, um tímido construindo o suntuoso palácio para a solidão. Mesmo assim vieram os amores, as desilusões, as tempestades, a realidade inevitável da morte de parentes e amigos, o universo que encolhia a cada passo adiante.
 
A pele enrugada e seca, desbotada pelo envelhecimento, é o eco triste da criança submersa, trancada num castigo involuntário, mas nunca condenada ao esquecimento, sonha que iremos reencontrá-la. Livre novamente, ela irá disparar correndo pelas calçadas, agitada e alegre, como numa eterna brincadeira de pique-esconde.       
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 09/07/2016
Reeditado em 09/07/2016
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