A Melodia da Memória

Em uma manhã bragantina, encontrei um grupo de amigos. A sala do estúdio era o nosso cenário. Entre trabalhos, risos e cafés, uma pausa para a contação: A amiga tira o celular do bolso e tão respeitosamente começa a narrar a história de sua sogra, já idosa e com Alzheimer. As primeiras linhas dessa prosa paralisaram-me....Tudo ali deixou de existir...

- Na sala da casinha do interior, eu sento com ela na sala. Ela gosta muito de conversar, mas já não lembra mais das coisas recentes... Agora, do passado antigo, ainda tem as memórias. Ela não conhece muitos as pessoas, mas toda vez que eu chego perto, ela reconhece a minha mãe e diz: - é a fulana? Ela sabe que eu gosto muito dela. (Disse com o olhar perdido).

- Um dia começamos a cantar (continuou) ... Ela adora cantar as músicas da sua mocidade. Em uma dessas vezes, meu amigo gravou tudo e depois produziu com sons instrumentais aquela memória despertada. No outro dia, voltou e pôs a música para ela ouvir. Isso aconteceu muitas vezes. Como ela não lembrava que aquela voz era sua, sempre achava que tratava-se de uma grande cantora, uma estrela das rádios...

- Que bonita! Exclamava.

- que nada, minha amiga, era ela mesmo cantando.. ouve aqui. (Voltei).

Em um toque no Smartphone, a música começou a tocar... Chorei desde o primeiro acorde... meus pensamentos pintaram a cena daquela casa, daquela senhora sentada, cantando seu passado antigo como quem se despede sem chorar, ouvindo a si, conhecendo-se sem disso saber, como talvez nem soubesse que a tal diva nela habitava a vida toda.

A gravação da música seguiu tocando no estúdio... Pensava naquela voz pairando pela sala, cada verso cantado movimentando-se no ar como fios de relembrança revisitando momentos. Não consegui conter a emoção. Pensei em como o Alzheimer é uma despedida das crônicas da vida... um deixar de lembrar que também é um deixar de existir do consciente. Chorei com a melodia daquela quase memória, enlutada pela perda das mais novas, como uma mãe anestesiada ao perder um filho jovem.

Voltei para casa, na estrada, lembrando a doçura do amigo musicando a pessoa, a narrativa da amiga eternizando a existência... A vida toda repartida em miniaturas, ressurgindo diante daquelas testemunhas sensíveis à poética do momento... Essas são as pequenices que valem a pena guardar, ainda que um dia não nos reconheçamos, ainda que nos confundamos com estrelas... antes de nos tornarmos uma.

Há quem diga que o universo emite sons inteligiveis, há quem diga que podem ser sinais de vida inteligente... Podem ser memórias de estrelas... as nossas memórias musicadas.

AlineCS