Morada.
Trago lembranças muito vivas de minha infância,são memórias muito sensitivas , desde o cheiro do leite quente na caneca amarela,até as unhas grandes e vermelhas de dona Maria,nossa vizinha. Entre brincadeiras no quintal e constante motivação de tirar notas boas na escola, minha infância também foi marcada pelo silêncio, mas não um silêncio qualquer, não por raiva,chateação,mas sim, por um estado de espírito constante de meu pai,um silêncio que só era quebrado pelo arrastar de suas sandálias.Na época, não entendia como ele conseguia ser tão calado. Hoje,entendo, que seu silêncio era uma busca constante por si mesmo.
A questão é: há quanto tempo não conseguimos ficar,de fato, sozinhos com os nossos botões?
Há quem não consiga ficar sozinho ,por medo, medo de que a solidão o deixe caminhar no escuro.Medo de pensar que, de repente, enquanto estiver sozinho, há uma vida lá fora que continuará sem ele. Fatalmente, a vida caminha sim ,sem ele, mas o sentido para esse percurso depende do que a pessoa quer. Às vezes, aquela conversa interna com a solidão, lhe dará o rumo certo.
Quem nunca esteve sozinho na multidão que atire a primeira pedra. Somos constantemente abordados por inúmeras questões. Profissão, religião,educação,continuidade de progresso , exercício de ética, conduta moral, idealizações de padrão, justificativas constantes dos “sins” e dos “nãos”. Quando chega o fim do dia, percebemos que não conseguimos fazer nem a metade do que queríamos, tão pouco do que deveríamos.
Poucos são os momentos que conseguimos estar conosco. Às vezes, em função da escolha profissional, da opção pela maternidade, do excesso de zelo pelo matrimônio, talvez por que achou melhor recompor a sua vida, e agora tá colocando ,novamente, azulejos azuis na cozinha, ou talvez tenha desistido porque lembrou-se da entrevista de emprego, ou talvez a amiga ligou , em prantos, por que, outra vez ,terminou o namoro. E mais um dia terminou, e você não completou nem as suas tarefas,nem o rumo da sua vida.
Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos uma “sociedade líquida”, na qual , só nos preocupamos com medidas paliativas, sendo que estamos constantemente em modificação, isso ,de certa forma,nos impede de olhar para dentro, camufla a ideia do nosso “Eu”, do nosso espírito, dos nossos conflitos. Já que há uma metamorfose diária, não sabemos se somos os mesmos quando acordamos e,tão pouco, quando dormimos.
Há quanto tempo você não conversa consigo mesmo ? Será que algum dia ,você já se perguntou isso? Não pense que isso te tornará uma pessoa sem rumo,ao contrário, são perguntas em que buscará certezas, e te farão entender que há um mundo lá fora, que só poderá ser explorado , se você lapidar o mundo que está aí dentro de você. E que geralmente é um latifúndio, sem dono. Se não tem dono, pode ser explorado por qualquer posseiro, qualquer um pode invadir ,habitar, explorar, devastar tudo o que há aí dentro, basta entrar e se instalar. Quantas vezes isso aconteceu com você? Quantas vezes a sua vida foi habitada por posseiros? Quantas vezes você permitiu essa invasão?
Não perca seu tempo indagando os questionamentos dos outros a seu respeito. Não gaste a sua energia com o dedo apontado do seu vizinho. Não renove o seu passado. Não se enrole no emaranhado das veias de um outro alguém. Não confunda o seu mundo com o de quem você ama.Não interprete personagens, interprete a vida. Não silencie as suas dúvidas.Não tenha medo do seu silêncio,nem do silêncio dos outros. Procure as suas respostas, mas saiba como fazer as perguntas. Não deixe que ninguém invada o seu mundo , crie as suas regras, comande as suas ovelhas, defina o seu espaço, e acredite , que um dia , todas as suas perguntas terão respostas.
Não deixe que seu mundo seja um latifúndio. Plante sementes, regue flores,construa cercas, e faça dele , sua morada.
Luciana Tapajós.