Crônica sobre morrer
Lucan diz que esconderam a beleza da
morte para nos fazerem aguentar a vida. Tinha razão, é uma dureza viver. Cansa o dia após dia incerto, os recomeços, cansa voltar a acreditar, continuar acreditando, sonhando, lutando por tudo isso.
Esta semana pensei, a revelia da minha cultura, no lado belo de morrer. Morre-se por amor, por um ideal, pela missão cumprida, para descansar e tantos outros motivos ou causas. Por um instante, considerei que não é a vida que nos fascina, mas a morte. Nossa certeza dela é que nos impulsiona para viver e sem ela nem o Carpe Diem dos poetas existiria... "Aproveitar o momento" não faria sentido se não fosse pela absoluta certeza da morte vindoura, essa dama que nos convida a todos para fechar os olhos.
Um dia, o farei, mas, se pudesse escolher, que fosse numa cidadezinha dessas de interior, em pleno dia da semana. É paradoxalmente belo morrer no interior, vi isso onde moro.
A música clássica ecoando na cidade pelas bocas de ferro, o anúncio do nome completo "daquele que em vida se chamou fulano de tal..., mas conhecido como... " Um misto de "eu existi" com um "eu existe para"... (Atentem para o sentido afetuoso nesta preposição).
Depois, a visita em casa. No interior, a eterna despedida é feita na casa da pessoa, na sala que é o lugar de honra, onde amigos e curiosos se aproximam, colocam uma flor arrancada do quintal e dão a vez ao outro, até que o caixão fique completamente coberto, colorido, quase um habitat de pequenas formiguinhas escondidas entre as pétalas.
Os cânticos não gosto... "Não tema segue adiante" é horrível, pulemos. Nada da frieza de capelas alugadas, flores compradas e modelitos de luto como se dá na cidade grande. No interior, naquela que foi a sua casa, fica o morto mais um dia entre os seus, os quais passam a noite acordados, ali pertinho, refazendo continuamente o café e renovando o pote de bolachas.
No outro dia, 9 da manhã ou 4 da tarde, o cortejo. Aquele monte de gente em procissão pela rua principal, o silêncio dos andantes e os acenos dos que ficam nas calçadas.
No comércio, curiosamente, todos eles, abaixam suas portas... É um desrespeito deixar as portas das tabernas abertas enquanto passa o séquito. Acho que é o único momento, pelo menos inconsciente, que o capitalismo rende-se à metafísica.
Em frente às escolas, fileiras de alunos batem palmas em homenagem... O morto, óbvio, não ouve nada, ah... Mas emociona os parentes que é uma beleza.
Na chegada à nova morada (aquele condomínio fechado que ninguém quer ter um terreno), discursos emocionados, mais palmas, outras falas e a abertura da tampa para um último afago no rosto, a última foto (ainda se tira fotos do morto no interior) e o adeus final.
Em casa, alguém que ficou já deve tê-la varrido de dentro para fora. O resto é igual a todo canto. Não sei (nem quero saber) o que acontece daí pra frente, sei que é inevitável.
Todavia, mesmo em face dessas "belezudes" todas, que essa dama, que para nós foi pintada de tristeza e horror, erre o rumo... Amanheceu aqui. .. Esse passarinho chato cantando no pé de buriti, a monotonia desse céu imenso e azul, esse vento enxerido invadindo a casa pela janela, espalhando o cheiro forte de café, a fumacinha saindo do pão cortado, a visão todo dia todo dia todo dia das pessoas que amamos, os beijos estalados, a água geladinha, as risadas pela casa, Tão chato!
Não sei como aguentamos viver essa feiura toda!
Carpe Diem!!!!!
AlineCS