FUNCIONÁRIO PÚBLICO

A gaveta foi fechada, solenemente, como se o ato cerrasse também uma vida. Aliás, pode-se dizer que essa metáfora não sugere nenhum exagero. O relógio dependurado acima da escrivaninha numa parede pintada de ontem, sugeriu à porta de saída. As badaladas soaram como se mitigassem às horas. Apenas os ponteiros meio tortos, desalinhados, deixavam dúvidas quanto à sua exatidão. Pura afronta.

A velha máquina de escrever ainda estava lá, meio que aposentada. Não diria desprezada. Havia muito de importância naquelas fitas gastas em intermináveis ofícios, encaminhados aos mais aristocráticos destinatários. Se com os idos tudo vira obsoleto, o que dizer de mim?. Um funcionário público de carreira que não aprendera a fazer outra coisa. A força da prematuridade havia dado lugar a uma flacidez quase decrépita - uma visão atrofiada, feito insígnia do tempo perdido.

Agora batia continência para o velho no vidro da porta, cujo reflexo era dele mesmo. Um ato contínuo de dever cumprido. Não chego a questionar se valeu a pena... - Dei a volta pela mesa arrumada para a retirada – Os apetrechos estrategicamente alinhados como que se despedindo. Fiz de propósito, confesso – Pelo menos, aqueles seres inanimados não sentiriam compaixão.

Nada mais havia por fazer. Caminhei em direção à luz que vinha da rua. De passagem, peguei o casaco que repousava na cadeira. E sem me esquecer de carregar da estante um Cervantes – Fiel escudeiro de tardes mornas, - iniciei a descida. A porta trancou-se atrás de mim. Após cada degrau vencido, recuperava o fôlego. As imagens me seguiam em reverência. Tudo me doía. A demora era justificada, pois não conseguia demover a ideia de não olhar para trás... - E só investi no próximo passo quando tive a certeza de que outro homem era quem saía.

Misael Nobrega
Enviado por Misael Nobrega em 06/07/2016
Reeditado em 30/01/2024
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