Conversa com o Brasil
Conversa com o Brasil
Teus velhos, Brasil, estão com um pé enfiado na vala comum. Teus jovens, idem. Converso contigo sem fé, Brasil, conversa curta, mal vale o verbo, passeio de mãos dadas com letras e palavras, porém distante de sentenças.
Disse o Mestre ontem mesmo: quem na verdade anda, a ela serve, por ela é reconhecido.
Tua verdade me foge, Brasil, quem és afinal, o que pretendes?
Fico a pensar…
Os campos de concentração erigidos pelos nazistas evocam a certeira
afirmação de serem um dos piores símbolos do aspecto maligno do ser humano. Com o correr do tempo se tornaram pontos de visitação pública. Paira na mente a indagação acerca de qual comportamento deve se manifestar nos visitantes ou eventuais turistas. Tirar selfies? Sorrir nas fotos? Cantar? Fazer piquenique? Namorar?
Sabe como nasceu isso, digo, os campos de extermínio, ou se preferir, o holocausto? Em 1933 o Partido Nacional Socialista toma o poder. Começam então os tribunais populares espalhados por toda a Alemanha, pessoas eram esterilizadas, presas, deportadas, outras enforcadas, tudo em nome de uma justiça que perdera toda e qualquer objetividade. Promotores e juízes se viram de súbito a serviço de uma engrenagem dotada de parâmetros mendazes. Finda a guerra alguma isonomia foi tentada através dos tribunais militares ocorridos em Nuremberg. Dentre as incontáveis páginas de depoimentos houve um ou outro caso de contrição por parte dos acusados. Confessara um promotor, no banco dos réus, que o processo contra um judeu idoso condenado a morte por “contaminação racial” fora uma encenação. Mas que ele não fazia idéia de que esse fato levaria a 6 milhões de mortos. Um dos juízes americanos retrucou a ele: a engrenagem começou exatamente com essa condenação.
Que fazer, Brasil, se tu nos condena? Quando eu era criança seria aviltante te imaginar com uma suástica. Mas hoje, com esses barões todos por aí, esfolando o lumpesinato, rindo do teu passado, nos enganando 60 vezes por segundo todos os dias da semana, os lobos todos roendo um osso que não acaba e sacrificando as crias, os bandidos tomando ruas, bairros, cidades, a opinião pública rasgada em ignorância, clichês arcaicos e desinformação calculada, o futuro com ares de forca, daquelas antigas, de madeira, o presente crivado de balas, senão de subornos, conluios, além do escárnio dos mesmos barões.
Converso contigo, Brasil, no anseio de momentos com o amigo saudoso onde as conversas prazeirosas de mentes semelhantes cortavam os prados como duas lebres ligeiras.
Ah sim, a Alemanha nazista, finda a guerra e ficou concluído, através dos tribunais militares, que as pessoas eram tiradas de suas casas na calada da noite, no início, através de uma ordem judicial. Mas que, o grau de envolvimento da sociedade nesta delinqüência abissal, do ponto zero ao zênite de suas perversidades, teve o valor moral de uma hecatombe, similar a um maremoto ou terremoto, tantos fizeram parte desse delírio coletivo.
Sei, você se ressente comigo por insinuar tal gênero de comparação, e retruca que nós não produzimos pessoas como o famigerado médico que, nos campos de concentração, selecionava crianças para experimentos. Os pais protestavam, pediam, devolva nosso filho, o médico sorria diante desse clamor, chamava os guardas, colocavam então a criança de cabeça para baixo e a serravam ao meio, dando a seguir uma metade para a mãe e outra para o pai.
Sabe o que eu lhe respondo, Brasil? Com uma única palavra: ainda.
Bem, eu lhe disse que essa conversa seria breve, tua verdade continua além da minha compreensão, ando exaurido, a homeostase cabível a qualquer brasileiro no dia a dia não encontra parâmetros.
Sei que fomos íntimos, Brasil, sei que prometeste cidades projetadas para abrandar os sentidos e inspirar o que de melhor houvesse em teus filhos. Também sei que em tempos idos foste aclamado como promessa e revelação, praticamente um gênio, aquele que aprende sem estudar e sabe sem aprender. É eloquente sem preparação, sem cálculos exatos ou profunda reflexão.
Mas as feições mudaram. "É tolo uma sociedade apegar-se a velhas idéias em novos tempos, como é tolo um adulto tentar vestir suas roupas de criança".
Teus tradutores mais gabaritados me dirão para relaxar, pois as coisas, ou melhor o desenrolar dos fatos, apesar dos pesares, apresentam uma certa lógica.
Talvez. Entretanto, isso não quer dizer que seja correto.
Eu te digo, falta carinho entre nós, Brasil. Os peixes tem o mar para existir. Aos pássaros cabem o céu e as árvores. O feto está protegido no ventre da mãe. Mas nós estamos no nada.
(Imagem: Diane Arbus, "Criança Mascarada com uma boneca", N.Y.C., 1961)
Conversa com o Brasil
Teus velhos, Brasil, estão com um pé enfiado na vala comum. Teus jovens, idem. Converso contigo sem fé, Brasil, conversa curta, mal vale o verbo, passeio de mãos dadas com letras e palavras, porém distante de sentenças.
Disse o Mestre ontem mesmo: quem na verdade anda, a ela serve, por ela é reconhecido.
Tua verdade me foge, Brasil, quem és afinal, o que pretendes?
Fico a pensar…
Os campos de concentração erigidos pelos nazistas evocam a certeira
afirmação de serem um dos piores símbolos do aspecto maligno do ser humano. Com o correr do tempo se tornaram pontos de visitação pública. Paira na mente a indagação acerca de qual comportamento deve se manifestar nos visitantes ou eventuais turistas. Tirar selfies? Sorrir nas fotos? Cantar? Fazer piquenique? Namorar?
Sabe como nasceu isso, digo, os campos de extermínio, ou se preferir, o holocausto? Em 1933 o Partido Nacional Socialista toma o poder. Começam então os tribunais populares espalhados por toda a Alemanha, pessoas eram esterilizadas, presas, deportadas, outras enforcadas, tudo em nome de uma justiça que perdera toda e qualquer objetividade. Promotores e juízes se viram de súbito a serviço de uma engrenagem dotada de parâmetros mendazes. Finda a guerra alguma isonomia foi tentada através dos tribunais militares ocorridos em Nuremberg. Dentre as incontáveis páginas de depoimentos houve um ou outro caso de contrição por parte dos acusados. Confessara um promotor, no banco dos réus, que o processo contra um judeu idoso condenado a morte por “contaminação racial” fora uma encenação. Mas que ele não fazia idéia de que esse fato levaria a 6 milhões de mortos. Um dos juízes americanos retrucou a ele: a engrenagem começou exatamente com essa condenação.
Que fazer, Brasil, se tu nos condena? Quando eu era criança seria aviltante te imaginar com uma suástica. Mas hoje, com esses barões todos por aí, esfolando o lumpesinato, rindo do teu passado, nos enganando 60 vezes por segundo todos os dias da semana, os lobos todos roendo um osso que não acaba e sacrificando as crias, os bandidos tomando ruas, bairros, cidades, a opinião pública rasgada em ignorância, clichês arcaicos e desinformação calculada, o futuro com ares de forca, daquelas antigas, de madeira, o presente crivado de balas, senão de subornos, conluios, além do escárnio dos mesmos barões.
Converso contigo, Brasil, no anseio de momentos com o amigo saudoso onde as conversas prazeirosas de mentes semelhantes cortavam os prados como duas lebres ligeiras.
Ah sim, a Alemanha nazista, finda a guerra e ficou concluído, através dos tribunais militares, que as pessoas eram tiradas de suas casas na calada da noite, no início, através de uma ordem judicial. Mas que, o grau de envolvimento da sociedade nesta delinqüência abissal, do ponto zero ao zênite de suas perversidades, teve o valor moral de uma hecatombe, similar a um maremoto ou terremoto, tantos fizeram parte desse delírio coletivo.
Sei, você se ressente comigo por insinuar tal gênero de comparação, e retruca que nós não produzimos pessoas como o famigerado médico que, nos campos de concentração, selecionava crianças para experimentos. Os pais protestavam, pediam, devolva nosso filho, o médico sorria diante desse clamor, chamava os guardas, colocavam então a criança de cabeça para baixo e a serravam ao meio, dando a seguir uma metade para a mãe e outra para o pai.
Sabe o que eu lhe respondo, Brasil? Com uma única palavra: ainda.
Bem, eu lhe disse que essa conversa seria breve, tua verdade continua além da minha compreensão, ando exaurido, a homeostase cabível a qualquer brasileiro no dia a dia não encontra parâmetros.
Sei que fomos íntimos, Brasil, sei que prometeste cidades projetadas para abrandar os sentidos e inspirar o que de melhor houvesse em teus filhos. Também sei que em tempos idos foste aclamado como promessa e revelação, praticamente um gênio, aquele que aprende sem estudar e sabe sem aprender. É eloquente sem preparação, sem cálculos exatos ou profunda reflexão.
Mas as feições mudaram. "É tolo uma sociedade apegar-se a velhas idéias em novos tempos, como é tolo um adulto tentar vestir suas roupas de criança".
Teus tradutores mais gabaritados me dirão para relaxar, pois as coisas, ou melhor o desenrolar dos fatos, apesar dos pesares, apresentam uma certa lógica.
Talvez. Entretanto, isso não quer dizer que seja correto.
Eu te digo, falta carinho entre nós, Brasil. Os peixes tem o mar para existir. Aos pássaros cabem o céu e as árvores. O feto está protegido no ventre da mãe. Mas nós estamos no nada.
(Imagem: Diane Arbus, "Criança Mascarada com uma boneca", N.Y.C., 1961)