Amigos Ocultos
Parece que as religiões são unânimes com relação a cada um de nós termos proteção de amigos ocultos, denominados de formas diversas: anjos da guarda; amparadores; devas; orixás...
Como sempre, os papos com “estranhos”, companheiros de viagens de ônibus interestaduais, na maioria das vezes, oferecem materiais para ser registrado e compartilhado.
Dessa vez, a fonte, ao entrar no ônibus, já me chamou atenção, por expor em mãos livro “Humanismo Integral” de Jacques Maritain, filósofo francês e cristão.
A boa surpresa foi que o lugar ao meu lado lhe fora reservado. Homem de nariz afilado, pele mulata e cabelos bem ondulados e já agrisalhando. Assim, estimei que já passasse dos setenta e deduzi tratar-se de intelectual cristão.
Minha torcida era que guardasse o livro, protegesse sua retina e, como é comum, quando conversamos com “estranhos” e com a certeza de não mais encontrá-los, travasse conversação sem censuras.
E foi o que aconteceu. Logo após aquela usual introdução supérflua, o intelectual cristão desandou com a experiência de ter sido protegido durante toda sua vida. E, acrescentou, o meu anjo da guarda, ou anjos, nunca cochilaram nem me abandonaram.
Sua narrativa foi extensa e minuciosa. Penso que passei a conhecer sua vida mais do que os íntimos. Se fosse registrar o que me disse, o texto ficaria muito, muito longo mesmo, o que certamente cansaria quem se atrevesse a ler. A mim não cansou, pois viagem interestadual sem papo é que é cansativa, além do que me agrada escutar a experiência do próximo.
Em síntese, sua narrativa demonstradora de que existem os amigos invisíveis, teve o seguinte modelo: apresentava momento de grande risco e dificuldade de sua vida e, sempre, aparecia solução temperada com aparentes coincidências. As coisas não acontecem por acaso e, em sua narrativa, aconteciam com a proteção desses amigos.
Assim, quando adolescente e tendo vivido em ambiente desfavorável, juntamente com grupo, que o acompanhava desde a infância, estavam prestes a entrar para cometer furtos maiores, seu pai foi promovido, mudaram para bairro bem distante e melhor, passou a frequentar escola bem mais educadora e arranjou novas e bem melhores amizades.
Quando jovem iniciando a fase adulta, vivia muito insatisfeito com a escola de nível superior que frequentava e, desde cedo adquirira vícios: fumo; álcool; jogo e prostituição. Pois bem, um de seus amigos surge com um panfleto de outra escola e deixa sua cidade, muda de escola para outra de ensino muito melhor.
A nova escola exigia muito mais estudo, o que lhe impedia de alimentar a maioria de seus vícios. Essa mudança o fez depois de formado, ir trabalhar em ambiente industrial em São Paulo, no qual descobriu qual era a área que gostaria de se eespecializar, mais do que isso, encontrou seu grande amor, companheira até hoje, caminhando para comemorar suas bodas de ouro.
Trabalhava com grande entusiasmo e satisfação na especialidade que escolhera. Entretanto, a vinda do segundo filho exigia receitas maiores. Surge companheiro de escola que viera do norte resolver pendências em São Paulo, bem como entregar convites de seu casamento, para companheiros mais chegados. Foi visita-lo, entrega-lhe o convite e pede para entregar outro à colega de sua turma, que não havia encontrado.
Pois bem, depois de muito procurar para encontrar o destinatário, a entrega do convite exigiu o reencontro com esse companheiro dos tempos de escola. Esse reencontro rendeu-lhe convite para ir trabalhar em empresa que estava se formando, cujo objeto era a implantação de sistema de transporte de massa sobre trilhos de São Paulo. O salário praticamente dobrou, continuou trabalhando em sua área de especialização e conseguiu, com sobras, arcar com as despesas da família.
Em certa fase de sua vida, fez sociedade com alguns companheiros de trabalho para criarem mais uma fonte de renda. A experiência foi mal sucedida e o encerramento das atividades o deixou com dívidas, que iriam alterar bastante sua vida. Mais uma vez, para ele, esses amigos ocultos funcionaram. Recebe telefonema de conterrâneo, velho amigo que trabalhava com a implantação de projetos, para que fosse, no período de férias, prestar consultoria para indústria, que estava prestes a iniciar sua operação. Renda dessa consultoria saldou com sobras as dívidas da experiência empresarial mal sucedida.
E, seguindo esse mesmo modelo de acontecimentos, contou muitos mais casos e aparentes coincidências que, ao surgirem obstáculos, facilitavam e muito o vencer dos mesmos.
A viagem chegava ao seu fim e o intelectual cristão, o pujante representante de nossa mestiçagem, encerrou com o seguinte comentário, que aproveito para finalizar, transferindo-o pra aqueles que, como eu, são interessados na experiência do próximo: “foi um prazer tê-lo como companheiro de viagem e tão atencioso à minha tese. Caso ainda restem dúvidas sobre a existência desses nossos ‘amigos ocultos’, se nunca fez reflexão sobre sua vida, ou se fez e não sentiu essa proteção, reveja seu viver e surpreenda-se”.