A inteligência

A inteligência é apontada como a grande diferença entre o ser humano e o animal. No entanto, não há regra sem exceção. Isto não quer dizer que de alguma forma me passe pela cabeça fazer comparações. Não, nada disso, ainda que levando em linha de conta diversas atitudes se ponha em causa a inteligência do homem.

Quando o fanatismo se sobrepõe à capacidade de raciocínio e agimos como carneiros, sou levado a crer que não somos superiores a qualquer quadrupede. Para dar ênfase ao que escrevo, sirvo-me de dois exemplos: Para o primeiro há que retroceder no tempo, ao tempo da Lisboa quinhentista, mais precisamente no ano de 1506.

A 19 de Abril, a Igreja de São Domingos estava repleta de fiéis. Rezava-se pelo fim da seca e da peste que assolava a região de Lisboa. Durante a cerimónia alguém notou no crucifixo um reflexo de luz. Perante o delírio de alguns crentes que diziam que era milagre ouviu-se a voz de um cristão-novo (judeu convertido) dizendo que o que viam não passava de um reflexo do sol.

Mal acabara de falar, o pobre foi arrastado pelos cabelos até ao adro onde o mataram e queimaram. Seguiu-se a loucura. Frades de crucifixo no alto gritando “heresia! heresia” incentivaram o povo a perseguir e matar os judeus, prometendo a absolvição dos pecados dos últimos 100 dias para quem matasse os "hereges". A carnificina não teve limites. Homens e mulheres, foram arrastados de suas casas torturados, violados e queimados vivos, inclusive crianças de berço que foram fendidas de alto a baixo ou esborrachadas contra a parede. A perseguição durou três dias, calculando-se entre duas e quatro mil vítimas.

Devido à peste toda a corte partira para Abrantes. Assim que o Rei D. Manuel soube do que se passava, mandou magistrados para tentar pôr fim ao banho de sangue. Com o rei fora, os poucos representantes da autoridade eram também postos em causa e, em alguns casos, obrigados a fugir.

A matança só acaba quando é morto um judeu que era escudeiro do rei, e com a chegada das tropas reais que acabam por impor a ordem. D. Manuel castiga os envolvidos, confiscando-lhes os bens e os frades instigadores são condenados à morte.

Um outro exemplo é o de um caso passado na rua onde moro em Lisboa e do qual já escrevi com o titulo Dona Rosa. Contava a odisseia passada por aquela senhora para poder ver os seus netos.

Três anos se passaram depois de ter escrito aquele texto e nada mais soube da situação da senhora. No entanto, esta semana tinha uns assuntos para resolver e retornei à minha residência em Lisboa.

Depois de uma visita ao médico de família, mostrava à minha esposa o resultado das imensas obras que o bairro e a nossa rua sofreu. Estava mais bonita, piso novo, os passeios reparados com a tradicional calçada à portuguesa, mais zonas verdes e jardins restruturados. Um “boa tarde senhores” fez com que voltássemos a cabeça e a víssemos. Era ela, a dona Rosa. O seu aspecto continuava como há três anos.

Naquela noite reli o meu escrito e prometi a mim mesmo no outro dia verificar se alguma coisa tinha mudado de lá para cá.

Oito e um quarto e lá estava eu meio escondido esperando pela dona Rosa. Passaram cinco minutos e a cena que vira há três anos repetiu-se. O seu olhar concentrava-se, na porta do prédio e através do vidro ia espreitando para dentro.

Eis que chegam, (mais crescidos) os seus netos. São precedidos pelos pais que quase em corrida os enfiam no automóvel, indiferentes ao olhar suplicante da senhora que tentava afagar um a um.

Um frio “bom dia”, foi quanto a pobre senhora ouviu do seu filho que dizia para os filhos se despacharem porque já iam atrasados. A dona Rosa repetia a mesma celeridade na ânsia de todos acariciar. Alheios, os pais, quase que empurravam os filhos, e pouco depois, o automóvel arrancava, ficando dona Rosa, a visionar o carro até ao virar na esquina. O seu rosto tranquilo e sorridente dava para imaginar a sua felicidade por ter tocado nos seus meninos, ainda que ao de leve. Regressa a casa feliz com a certeza de que amanhã lá estará, faça chuva ou faça sol, para mais uns breves segundos de felicidade.

Assim é o ser humano, dotado de inteligência, mas não a suficiente para colmatar a sua bestialidade nas relações interpessoais.

Lorde
Enviado por Lorde em 04/07/2016
Reeditado em 05/10/2016
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