O Quadro de Renoir
Havia duas raparigas ao piano, Raparigas ao Piano - que nome tão estranho para se começar, mas este foi dado pelo autor da obra e não posso negar que é um bom nome. Era um cenário florido tão quanto as mulheres eram belas, pelo que imagino deviam estar em algum quarto luxuoso de algum castelo. Uma delas estava em pé, vestido rosa e cabelos marrons, e a outra sentada diante do instrumento, com cabelos dourados, vestida a branco límpido com laços azuis na cabeça e na cintura, provavelmente estava aprendendo sobre a arte dos sons, de certa forma pareciam-me felizes e eu poderia ouvir suas rizadas juntamente com o toque desajeitado dos acordes da iniciante; Este era o quadro que eu mais gostava, uma réplica é claro, o original devia estar em algum museu bicentenário na Europa, mas era uma réplica perfeita, que me trazia sensações únicas, talvez a única pintura que me provocasse isso, talvez a única pintura que já vi, acho que isso é justificável. Estavam presas nas paredes externas da escola de música da cidade, lembra? Ficava na rua 1º de Setembro com a Castelo branco, perto do centro, logo ao lado daquele museu que abrigava móveis antigos que saiam da prefeitura. Sempre passava por lá para ir a universidade pelas manhãs bem cedo, uma pena que sempre estava fechada nesse horário, se estivesse uma brecha entrava naquele lugar e só saia no dia seguinte sendo expulso por alguma professora. Até chegar a essa esquina meus olhos ainda ficavam remelados pelo sono e pelo cansaço matinal, a neblina das seis ajudava a minha mente a perceber a monotonia e o frio de três anos de caminhada até o estudo, mas sempre quando chegava próximo as raparigas meu coração se aquecia e eu despertava, era só algum tipo de anúncio que instigava a pessoas curiosas a entrarem na recepção da escola e se cadastrarem para terem aulas de instrumentos que nunca viram antes na vida, sabia disso, talvez as outras pessoas deveriam sentir essas mesmas coisas que sentia. Por minutos esquecia-se dos deveres acadêmicos e o sorriso estampava meu rosto, de certa forma era um alívio, um som no meio da pedra, esta cidade sempre foi muito cinza, assim como minha faculdade, nunca teve muitas arvores por aqui ou até mesmo outras cores, os morros e elevados faziam tudo isso se tornar numa onda de pasmaceira concreta, as pessoas também ajudavam com essa apatia, sempre tiveram a cara um tanto amargurada e enrugada, eram iguais aos prédios daqui, por vezes tomava até alguns sustos com algumas senhoras e logo as falava para tirarem a máscara do grito, esta parte era divertida. Antes que me pergunte, nunca tinha outra oportunidade de voltar aquele lugar em outra hora além da manhã seguinte, se você quer ser alguém de verdade na vida pacata da cidade grande deve passar pelo menos quatro longos anos, dia após dia, desde a manhã até o descer do fim da tarde num prédio cheio de livros didáticos e computadores decorando regras e conceitos para transforma-los em papel verde futuramente, é assim que o sentido se comporta. Bem, mas como ia dizendo, as raparigas me encorajaram de maneira singular, e mesmo que a cidade me afundasse, como ainda iria, tive ganancia em saber o fim disso.
Certa manhã, com a passagem de uma frente muito mais fria que minha alegria, a energia de alguns bairros da cidade cessou assim como o em que minha pequena casa ficava e mesmo que meu despertador estivesse a escandalizar freneticamente para sair da cama às cinco e meia, a água do banho dizia totalmente o contrário. Tudo parou naquele dia, nunca confie em uma máquina, ainda mais se você as deixa responsável por fazerem o seu café da manhã e organizarem o seu vestuário também. Sempre fui rigoroso com meus horários, um exemplar aluno do sétimo período da faculdade de física - que besteira - mas nesse dia minha honra congelou e o atraso foi inevitável. Foi um fiasco, tentei de mil maneiras concertar o incidente, a tentar minimizar o maldito tempo acabava por me atrasar ainda mais, só pensava no que iriam achar de mim, talvez meus colegas de classe pudessem acreditar que estava morto, por que não, ainda devem estar pensando isso, mas eu fui, correndo e tropeçando por cada calçada irregular, todo amarrotado e desarrumado, atraindo olhares por onde passava. O mais impressionante que, mesmo com toda essa catástrofe juvenil, aconteceu algo de inesperado naquele dia infausto. Eu ouvi uma música, bastante desarrumada, assim como eu, enquanto passava pelas raparigas. Diferentemente dos outros dias a música era real, um som de piano torto vinha da porta entreaberta da escola, sim, ela tinha acabado de abrir para os alunos da manhã; O som me paralisou enquanto iria esquecendo o quão atrasado estava. A partir desse momento, cada passo meu até o pequeno salão mal iluminado da escola de música cantava em uníssono com as notas agudas do instrumento e lentamente fui à origem. Finalmente, quando os sons cessaram bruscamente, estava eu parado diante da única pessoa presente ali.