Desaparecido
Pedro, 18 anos, negro, 1,67m de altura - DESAPARECIDO.
No dia 1º do mês corrente Pedro saiu de casa a pé determinado a cruzar a caatinga com destino a Salvador. Previsão do próprio antes de iniciar a caminhada: chegar à cidade no dia 4 pela manhã. Nos Órgãos Competentes não há registros que confirmem a sua chegada. A família acredita que ele possa estar trabalhando nalguma obra da construção civil. A mãe não quis se manifestar.
Se alguém souber do paradeiro do rapaz, por favor, informe na Delegacia mais próxima.
Salvador, 30 de Agosto de 2012.
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Documento afixado na parede, no interior da Delegacia, do Centro de Salvador.
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Na planície ressecada da caatinga o Sol brilhava forte e ofuscava a vista de quem seguia seu rastro, mas Pedro caminhava na direção sudoeste, de onde sopravam ventos rasteiros que varriam a terra e, não raro, provocavam redemoinhos repletos de areia e folhas secas. Nesses momentos não havia outro jeito, a não ser, fechar os olhos e esperar o turbilhão passar.
À sua frente durante uma aragem esparsa Pedro contemplou o intenso azul celeste sem manchas até o infinito e um calafrio percorreu-lhe a espinha. Por um átimo de segundo teve a sensação de que um buraco se abriu sob seus pés. O coração disparou seguido de vertigem. Como não havia por perto no que se segurar, teve certeza de que cairia inevitavelmente. Baixou a cabeça e olhou pros pés grossos cobertos de poeira, novamente sentiu o chão sob os pés, o batimento cardíaco cedeu e logo recuperou suas forças.
Intrigado com o mal-estar súbito, deteve o passo por um momento, os raios de Sol inclementes a lhe maltratarem pelas costas todo o corpo, queimavam-lhe cruelmente o pescoço. Incomodado levou a mão esquerda à nuca, massageou levemente, e por alguns breves minutos manteve a mão lhe cobrindo o cangote, até que aliviou a ardência. Enquanto massageava o pescoço com a mão esquerda, com a direita balançou a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão. Estava sem água, completamente vazia. Largou a cuia pendente pra passar os dedos nos lábios ressecados.
Pedro sofria sufocado pelo calor que o castigava miseravelmente; o ar quente e seco associado à inflamação de suas vias aéreas oprimia-lhe o peito e dificultava-lhe a respiração, por isso era obrigado a inalar o ar pela boca; a sudorese excessiva mantinha a sua roupa encharcada; a cabeça, de cabelos ralos e desprotegida - sem um chapéu, um boné, nada - ardia terrivelmente no cocuruto. Não bastasse o padecimento físico, acometeram-no alguns pensamentos confusos e desordenados que o afligiram ainda mais; retirou a mão do pescoço e, novamente, uma tonteira repentina o ameaçou de cair; levou as duas mãos ao rosto, esfregou os olhos, pensou unicamente na sua sobrevivência e teve medo.
Tomado de breve lucidez mirou o trajeto à frente à procura de sombra onde pudesse se proteger e avistou um juazeiro ao longe envolto aos galhos pelados e cheios de espinho da caatinga rala. Decidiu alcança-lo sem demora. Na sua avaliação levaria alguns minutos caminhando até chegar à sombra amena e teve vontade de correr, todavia não tinha a menor condição, seu corpo estiolado e muito fraco no máximo o levaria até lá, mas, correndo, não. Percebeu que seus pensamentos estavam ficando mais e mais confusos a cada momento, tinha dificuldade para raciocinar. Nesse instante teve desejo de voltar pro seio da família, reencontrar os pais e os irmãos menores, ajudar no que fosse possível, porém logo lembrou-se da secura da estiagem, da lavoura queimada, da família desolada, e decidiu não sofrer arrependimentos. Continuaria seguindo adiante, era o único recurso admissível capaz de mudar aquela realidade sofrida. Devia chegar a Salvador, trabalhar, fazer dinheiro e retirar toda a família da miséria. Sempre achou que, por ser o filho mais velho, era missão do seu destino vencer na vida e levar todos pra viverem na cidade grande junto consigo. Saiu de casa sob promessa e haveria de cumprir. Todos torciam pela sua vitória, todos, menos a mãe. Ela tinha maus pressentimentos; na sua humilde experiência, com a voz tremula e alquebrada, inúmeras vezes disse ao filho tudo o que, aflito, o seu coração de mãe recomendava, no entanto não foi convincente o suficiente para dissuadi-lo daquele propósito insano, e, derrotada, na sua despedida deu-lhe apenas um beijo na face e um abraço apertado, muito apertado, e bem demorado, cheio de profundo e ternos sentimentos, depois, calada, virou as costas e saiu para os seus afazeres de rotina. Chorou sozinha a perda do seu menino. Ele partiu em seguida.
Esta recordação lhe provocou um forte aperto no coração e lhe fez derramar algumas lágrimas. Subjugado baixou a cabeça. Mas não se deixou abater, lembrou-se imediatamente que, quando iniciou sua jornada, estava determinado, repleto de coragem e de muita fé, sempre esteve. E haveria de ser assim até o fim, acompanhado da força divina e do apoio da família, menos da mãe, ele reconhecia, a lhe reprovar o intento, e que ele preferia não lamentar, pelo contrário, muito em breve haveria de surpreender a todos e deixa-la orgulhosa, tinha certeza disso.
Era desse modo que fazia: evocava esses sentimentos para recuperar o animo e a disposição sempre que suas forças ameaçavam fraquejar. Moralmente revigorado levantou a cabeça.
Humilde, seguindo a pé e descalço, rumava sozinho em busca do seu destino, e contava de chegar a Salvador, só depois do terceiro dia de caminhada. Não levava dinheiro consigo, pois a família era muito pobre e não tinha de onde tirar vintém. Um tênis surrado e algumas peças de roupa iam pendurados às suas costas embolados dentro de uma sacola cuja alça lhe cruzava o corpo em diagonal descendo do ombro esquerdo até a cintura do lado direito. Aquelas peças de roupa dentro da bolsa era toda a sua fortuna.
Mais de três dias já haviam se passado desde que se pôs a caminho – quantos mais? Pedro não saberia responder – sem que tivesse conseguido chegar ao destino proposto, e muito menos, que tivesse visto ou cruzado com viva alma. Ninguém atravessou o seu caminho, seja para ajudar ou para pedir ajuda, ninguém! Não havia duvida, estava mesmo perdido, completamente sem norte naquela imensidão de terra rachada, de vegetação estorricada e rios sem água. Era muito provável que estivesse caminhando em círculo, indefinidamente. Muito comum de acontecer sob um Sol abrasador até mesmo com o povo nativo e calejado da região, quando aventura se embrenhar pelo semiárido do nordeste sem o justo conhecimento nem o devido recurso. Em casos semelhantes, a companhia de um animal forte e resistente, como o burro ou o jumento, são auxílios muito valiosos e indispensáveis. Única garantia de sucesso na empreitada. Sem nenhum desses animais, é tolice, suicídio mesmo, lançar-se em uma aventura dessa monta acreditando que vai dar tudo certo.
Quando iniciou seu projeto, Pedro colocou na sacola provisões suficientes pra durarem exatos três dias, pois, de acordo com seus cálculos, era esse o tempo necessário para concluir o feito; e foi dito e feito, durou pelo que tinha que durar. Terminada a ração, só conseguiu fazer duas refeições diárias uma única vez, quando encontrou dois ovos num ninho de camaleão. Um ovo ele comeu pela manhã assim que os achou, mordeu a camada de pele grossa o suficiente para rasgá-la e engoliu clara e gema como se estivesse tomando uma grande colherada de sopa; o outro, deixou pra comer à noite, antes de dormir. No mais teve apenas uma refeição eventual durante o dia, nas vezes em que se deparou com pés de mandacaru, de umbu... Nos dias sem frutas, ficou fatalmente sem comer.
Em jejum o dia inteiro, encontrava-se já inteiramente debilitado pela falta de proteínas no organismo. Tornou a olhar fixamente o juazeiro e decidiu que era necessário chegar ao pé da árvore o quanto antes. Ainda parado no mesmo lugar olhou novamente para o céu imaculado diante das visitas e divagou por breve lapso, pensou: “se eu fizesse o mesmo na direção contrária, veria o sol em brasa, e se mantivesse os olhos fitos a encara-lo, ele, o sol, me deixaria cego impiedosamente”.
Pedro arrastou um pé, depois o outro; arrastou de novo um, e depois o outro...
Notou que continuava transpirando muito e a sede era insuportável. Obrigado a inalar o ar pela boca, esta se mantinha constantemente seca, absolutamente sem saliva, e a língua, lá dentro, parecia um pedaço de carne coberto de farinha, como as suas mãos, que ele levava sujas e cobertas de poeira. Quando segurava um objeto qualquer, não tinha tato, e sem o tato, não percebia a textura das coisas, somente o peso.
Sem forças, completamente depauperado conseguiu arrastar de novo um pé, muito lentamente... depois o outro...
Curvado pela fraqueza extrema não aguentou mais o peso do próprio corpo e deixou-se cair sobre o chão duro e seco ao pé do juazeiro. O sol já não o incomodava e, dali a pouco, sumiria no poente. Logo, logo estaria iluminando a outra metade do planeta.
Deitado no chão de costas Pedro fechou os olhos bem apertados e assim permaneceu, forçando os músculos da face. Passado um tempo, abriu de novo os olhos no desejo de contemplar o firmamento. Continuava azul intenso, como antes, só que acentuadamente mais escuro, e agora havia uma mácula negra acima de sua cabeça a bailar em círculo de um lado para o outro ao sabor do vento. Tornou a fechar os olhos... A noite fúnebre caiu e fez o mundo envolto na escuridão desaparecer da vista, porém, a lua nova, cheia de graça, emergiu no horizonte e no mais pacífico silêncio banhou de luz argentina a árida terra seca.