O Velho e o Afogado
A experiência nos levou ao entendimento de que, ao superarmos a idade dos setenta e cinco, passamos, de forma inconsciente, a viajar por mares do passado e a atracar em portos seguros de recordações.
Desfilam lembranças, como se quiséssemos reprisar, se não o longo filme, pelo menos as cenas mais marcantes de nossas vidas. E, acompanha sempre a indagação de: “porque uns somente conseguem recordar a partir de mais tenra idade e, outros, somente, a partir de algum momento já na juventude”?
Pouco importa a partir de quando, mas, certamente, o que vem são as cenas mais alegres ou tristes, mais fortes, mais ternas, mais ardentes, de maior plenitude, de realização, ou seja, as que mais marcaram nossas mentes e corações.
Como não recordar aquela criança do contra que, nas brincadeiras derrubava seus castelos de areia, dedurava seu esconderijo, acabava com a brincadeira levando embora o objeto mais importante, como a bola na peladinha de futebol.
Difícil não se encher de meiga lembrança da menina linda com quem trocavas a chupeta e que te emprestava o velocípede para andar.
Quem nessa idade, nesse processo, poderia esquecer a atenção e os carinhos maternos, principalmente nos momentos mais difíceis, e o companheirismo paterno, no cumprimento dos deveres escolares e nas tardes de domingo, para assistir o futebol.
Não me venhas dizer que, não lembras de teu primeiro amor, de quem te ensinou a dançar, do primeiro baile enfim das primeiras experiências. E, no caso de ti mulher, do seu primeiro “soutien”. As primeiras experiências doces ou amargas são inesquecíveis...
E, assim vai se desenrolando novelo de recordações: aquela segunda época, ou reprovação, as aprovações, a formatura, os amores aos quais tiveste maior admiração, a descoberta do que gostarias de fazer profissionalmente, o noivado, o casamento, o nascimento dos filhos, enfim as cenas, que mais aplaudes, nessa reprise do filme de tua vida.
Se non é vero é bene trovato, se não for verdade é bem achado (no sentido de inventado, bolado) diz o dito italiano, que se ajusta ao saber popular (não sei se já comprovado ou rejeitado cientificamente), que afirma: os humanos ao viverem a experiência de afogamento, nos últimos instantes, assistem, compulsoriamente, à reprise do filme de suas vidas.
Assim, parece, que nós velhos e os afogados vivem experiências semelhantes, uns sovados pelas ondas nas águas profundas, ou pelo silêncio dos lagos, enquanto nós velhos, sovados pela solidão, ou pela certeza de um longo passado e a perspectiva de futuro incerto e cada vez mais breve.
Mas, existe grande diferença, os afogados, que não acreditam em outras vidas após a morte, morrem sem qualquer esperança, enquanto nós velhos, mesmo aqueles que, também, não acreditam em outras vidas após a morte, têm a perspectiva de ainda viverem cenas inéditas de suas vidas, apesar de filme de curta metragem.
Assim, aproveitemos essa curta, que nos resta, vivendo intensamente cada cena, como se fosse aquele beijo de reencontro com o grande amor, com aquele fundo musical, que faz dançar os anjos, antes que surja o verbete final: End; Final; Ende; Fine; Konek; Fin ... FIM.