REMINISCÊNCIAS DA JUVENTUDE
Antes de pegar no sono, tenho o costume de rezar o terço. Deitado quase sempre, embora não ache que deva ser a melhor posição de se dirigir a Deus, nossa autoridade máxima. Muitas vezes acabo por dormir e só no dia seguinte, ou mesmo de madrugada, encontro o terço embolado no meio da cama. Das vezes que permaneço acordado, vêm à minha mente algumas lembranças saudosas. São tão saudosas que não consigo desligar-me do momento e acabo por transportar-me, talvez viajar no tempo, voltando à infância, à pré-adolescência, à juventude. O mais interessante é que me dá uma ‘tristeza gostosa’. Acho que isso pode ser chamado de saudade, já que saudade é definida pelo poeta Bastos Tigre como sendo uma palavra doce “que traduz tanto amargor” e “como se fosse espinho cheirando a flor”. Na verdade não é a palavra a que ele se refere, mas ao sentimento da saudade mesmo.
Quando estudei no seminário Nossa Senhora de Fátima, em Itaúna – MG, de 1961 a 1963, aos 12, 13 e 14 anos de idade, experimentei um período muito marcante de minha vida, diga-se de passagem.
Voltando ao que estava dizendo, no início deste texto, não raro, acontece que eu consigo fechar os olhos e lembrar-me direitinho de muitos momentos, viajando no tempo, ligando uma ‘máquina imaginária’, como se isso fosse possível. Experimento instantes, através dos pensamentos, tão reais... tão reais... Aí, um dia desses, pensei: vou tentar registrá-los, através de uma mensagem. Quero dizer que me dá uma vontade de chorar... de sorrir... sei lá, nem consigo explicar. Pior pensar que, praticamente, todos os padres e muitos amigos do seminário já se foram. Não há como reconstruir aqueles momentos, nem que eu quisesse, a não ser em meus pensamentos. Isso me dá um frio na barriga. Imagino, por exemplo, na sala de estudos do seminário, à noite. A sala cheia de companheiros, uns duzentos mais ou menos, seminaristas, é claro, de diversas cidades de Minas e até mesmo de cidades de outros estados deste Brasilzão. Uma sala grande, bonita, com carteiras individuais enfileiradas, onde, no lugar de escrever e apoiar os braços, existia um armarinho com duas portinhas. Dentro, guardava os objetos escolares. Consigo enxergar, com clareza, o padre Francisco, holandês, que mancava da perna direita, resultado de uma tragédia. Terminada a Segunda Guerra Mundial, ao soprar um pequeno objeto, em uma praça, numa cidade da Holanda, que não sabia tratar-se de uma granada, esta explodiu em seu rosto, ferindo-o bastante. Para corrigir um pouco os machucados, foram retirados de suas nádegas pedaços de tecido para cirurgia plástica. É uma história longa. Ele nos contou. Continuando, ele ficava sentado à mesa, em frente, no início da sala. Às vezes, rezando o breviário (livro com os ofícios que os sacerdotes devem orar todos os dias). Outras vezes, um jornal. De vez em quando, com os óculos apoiados em cima do nariz, quase caindo, nos olhava e até mesmo chamava atenção de alguém que estivesse conversando. Costumava colocar de castigo, em pé, bem na frente da sala, numa posição constrangedora, quando algum companheiro cometia uma indisciplina. Ficar em pé, de castigo, era um costume de antigamente. Muita gente sabe disso. Não sei o porquê, mas eu caíra na simpatia do Padre Francisco, havia muito tempo, e ele, a certa distância, dava um sinal com a mão me pedindo que fosse a seu quarto, no andar de cima da sala de estudos, para buscar o seu breviário. Sentia-me orgulhoso por fazer isso. Uma semana antes de sair do seminário, achara estranho porque ele passou a pedir a outro colega, o Sílvio, de Itabira, para fazer o meu trabalho. Fiquei triste e pensativo na época, mas não indaguei a ele. O motivo foi revelado pouco depois, já que tive que ir para casa, saindo do seminário definitivamente. Isso em 06 de dezembro de 1963. Interessante é que, quando começo a pensar, vivo uma realidade tão real... tão real... As luzes acesas nos enormes lustres, bonitos... bonitos... Consigo enxergar as paredes da sala de estudos com quadros pintados, abstratos, alguns em formatos geométricos, outros não, obras do saudoso padre Martinho, também falecido, que era vigário de uma paróquia, em um bairro de Itaúna e morava no prédio do seminário.
Ah, meu Deus, quanta saudade me dá! Olho para trás, enxergo meus companheiros. 21h45min. Momento de rezar a oração da noite. O Gil, colega de voz muito límpida e empolgante, comandava as orações. De joelhos, em cima das cadeiras, todos de costas, um para o outro, rezávamos com fervor. Que hora gostosa! O sono já tomava conta. Como era delicioso deitar, pensar na mamãe, no papai, em toda a família, com uma saudade imensa ... Por preguiça de arrumar a cama, não tirava a colcha. Dormia em cima dela. No outro dia aparecia toda amarrotada. Às 5h45min, acordava sonolento diante da saudação, em latim, do diretor, Padre Adriano. Ele falava alto e em bom som: – Benedicamus Domino! Respondíamos: Deo gratias! - já pensando no dia que ainda não havia clareado e que seria longo. Enxergo o Padre Adriano, cabelos louros e meio avermelhados, olhos azuis e profundos, batina branca, cordão amarrado na cintura, aquele cordão grosso, dobrado, semelhante ao que os freis franciscanos usam hoje. Escuto todos os ruídos, como se estivesse vivendo de novo aqueles momentos. Vejo as luzes acesas, a meninada tirando o pijama, arrumando a cama, colocando a toalha no pescoço, pegando o copo ou a caneca, espremendo a pasta dental na escova e colocando-a na boca como se fosse cachimbo. Em seguida, dirigíamos ao saguão, onde havia uma grande pia com dezenas de torneiras. Só se ouvia o barulhinho da escovação de dentes e o respingar da água. Como pode ser? Isso tudo está ainda gravado em meus pensamentos. Parece que estou vivendo isso tudo de novo, agora, no real.
Pronto. Acho que consegui concretizar através desta mensagem algumas reminiscências de minha juventude. Sinto -me feliz com isso.