A estátua viva
E de repente vejo um anjo, em pleno calçadão da Avenida Barão do Rio Branco, reluzente, de pé num pedestal rústico.
É uma artista de rua na performance de estátua viva.
Toda arte me atrai como que por encanto, assim, quando dei por mim, estava bem perto dela; uma moça morena, da pele fina, o nariz arrebitado e dos cabelos negros, da mesma cor que imaginei que seriam seus olhos fechados, calados, rijos feito rocha.
Uma estátua de anjo.
Para chegar perto sem levantar suspeitas, comprei um churros do doceiro ao lado, que fingi comer, queria mesmo era admirar a artista.
Ela não se mexia, não piscava e tive a sensação que não respirava, apenas existia, sob o fardo do silêncio, indiferente ao movimento de carros e pessoas.
O churros escorreu pelos meus dedos quando um sonho delirante atravessou minha mente: E se eu fosse aquela estátua viva?
Não pude evitar. No instante seguinte me peguei fechando os olhos, incorporando aos poucos a estátua, dominado pelo silêncio, permitindo ao corpo levitar.
Já tive desses delírios, sonhei que era um pássaro, das asas de Ícaro, que derreteu num dia que nem tinha sol.
Respiro lento enquanto a lembrança de uma brincadeira de criança me invade, vaca amarela pulou a janela, quem falar primeiro comeu a bosta dela, e fico quieto, num completo silêncio que nunca enfrentei, nem mesmo os passos nas calçadas escuto mais, os carros que passam são imagens amorfas, o meu sangue esfria, consigo sentir a pele congelar.
Um cachorro vadio caminha por perto, meus olhos estão fechados, mas sinto seu cheiro de cachorro molhado e me invade uma vontade imensa de espirrar, que a custos consigo controlar.
Duas moças se aproximam fazendo algazarra, uma quer se mostrar mais feliz que a outra, apontam na minha direção, sorriem da plenitude de meu rosto de pedra.
A moça mais alta tenta tocar em mim, mas desiste no instante final, levada pelo medo da minha reação.
Elas se distraem com a capa de uma revista, suspiro num alívio que logo termina; um menino magrelo surge de repente, escapando das mãos da mãe descuidada.
Do restinho de visão que entra pela fresta dos meus olhos, percebi que era um moleque travesso.
Ameaçou chutar minha canela.
Regurgitei todos os meus medos, pensei, vaca amarela...
Num movimento brusco, a mãe puxa as mãos do menino e o leva para longe.
Não tenho tempo para alívios, uma coceira me atinge embaixo da axila, logo ali, que agora tenho asas, a vontade de mexer e me coçar é tanta que...
Vaca amarela pulou a janela, quem coçar primeiro comeu a bosta dela...
O doceiro pergunta se quero outro churros e me retira daquele devaneio.
O céu já não é cinza, a luz caminha aos poucos na escuridão.
Encarei a artista com olhos carregados de aplausos e depositei cinco reais aos seus pés.
Ela então se movimenta, muda de posição e sorri de leve, um riso puro, repleto de enigmas.
Atravessei a rua enquanto os raios do sol rasgavam os edifícios e os solavancos da cidade mostravam o concreto pulsante, a vida aos poucos voltando ao normal.
No entanto, há o lírico sorriso da estátua viva, tão enigmático que chego a pensar que era mesmo o sorriso de um anjo.